Orígenes Céu

Orígenes — Tratado da Oração

XXIII Que é o céu?

1 Quando se diz que o Pai dos santos está no céu, não devemos imaginar que ele tenha forma corporal e habite no céu. Assim limitado, seria menor do que o céu que o conteria. Ao contrário, devemos crer que é ele, na inefável potência da sua divindade, que compreende tudo e a tudo contém. Geralmente falando, as expressões da Bíblia, que parecem aos mais simples indicar literalmente que Deus se acha em um lugar, hão de se entender com um sentido que convenha a concepções grandes e espirituais sobre Deus. Estas são expressões do Evangelho de S. João: “Antes do dia da Páscoa, Jesus, sabendo que era chegada a hora de passar deste mundo para o Pai, ele que havia amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). E pouco depois: “Sabendo que o Pai lhe havia dado tudo em mãos e que, saindo de Deus, voltava a Deus” (id. 13,3). E depois de outras coisas: “Ouvistes o que eu vos disse: Eu vou e venho a vós. Se me amasseis, vos alegraríeis porque vou para o Pai” (Jo 14,28). E mais adiante: “Agora vou para aquele que me enviou. E nenhum de vós me pergunta: Aonde vais?” (Jo 16,5). l

Se estas palavras devem ser entendidas em sentido local, é claro que o mesmo é de se aplicar às seguintes: “Jesus, em resposta, lhes disse: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele morada” (Jo 14,23).

Ora, este último dito não significa mudança de lugar, de sorte que o Pai e o Filho se aproximassem daquele que ama a palavra de Jesus; portanto, nem as precedentes palavras são de se entender em sentido local.

Na realidade, elas significam o seguinte: o Verbo de Deus, descendo até nós, na condição humana, em relação à sua dignidade humilhou-se enquanto esteve junto aos homens. Ele , passa deste mundo para o Pai, a fim de que também nós aí o contemplemos no seu estado perfeito, quando da pobreza terrena e voluntária ele volta à sua própria plenitude. E assim nós mesmos, sob a sua guia, seremos aí repletos e libertos de toda miséria.

Volte, portanto, o Filho de Deus para aquele que o enviou, deixe o mundo e retorne ao Pai!

Devemos também entender mais em sentido místico a frase no final do Evangelho de João: “Não me toques, pois ainda não subi ao Pai” (Jo 20,17), compreendendo duma maneira mais digna de Deus, com santa perspicácia, que a ascensão do Filho para o Pai é mais uma subida do espírito que do corpo.

2 Expliquei mais cuidadosamente a frase “Pai nosso, que estás no céu”, para rechaçar a opinião tão imprópria que têm de Deus aqueles que imaginam o céu como um lugar. Quis também impedir que alguém julgue encontrar-se ele num ambiente físico. Isto levaria, em consequência, a dizer que Deus tem um corpo, donde se seguiriam opiniões muito ímpias, crendo ser ele divisível, material e corruptível. Todo corpo é divisível, material e corruptível.

Admitamos, porém, que alguém nos pergunte, não por falta de respeito, mas com sincero desejo de ver claro, como pode acontecer que possa existir outra espécie de natureza, senão a material.

3 Antes da vinda corporal de Cristo, muitas são as passagens da Bíblia que parecem dizer que Deus está num lugar material. Não será fora de propósito citar alguns desses textos, para afastar toda perplexidade a quem, pela incapacidade intelectual em que se encontra, circunscreve a Deus, que está acima de tudo, num lugar pequeno e limitado.

Em primeiro lugar, isso pode ser encontrado no Gênesis: “Adão e Eva ouviram os passos do Senhor que passeava pelo jardim, à hora da brisa da tarde. E Adão e sua mulher esconderam-se da face de Deus entre as árvores do paraíso” (Gn 3,8). Aos que não querem entrar nos tesouros da Sagrada Escritura e nem mesmo lhe batem à porta (cf. Lc 13, 25), perguntamos: “o Senhor Deus não enche o céu e a terra?” (Jr 23,24). Porventura, pensam eles que tem forma corporal Aquele de quem “os céus são o seu trono e a terra o escabelo dos seus pés”? (Mt 5,34-35; Is 66,1). Em comparação com o céu e a terra, o paraíso que eles imaginam como um lugar material, é um espaço muito pequeno, que Deus não encheria. É acaso possível, pensar que Deus ficava limitado ao sítio onde eles ouviram os seus passos, lugar este ainda mais reduzido que o paraíso?

Conforme a sua maneira de pensar, seria ainda mais absurdo que Adão e Eva, atemorizados diante de Deus por ter pecado, tratassem de esconder-se da “face de Deus entre as árvores do paraíso”. Não se diz ali que eles queriam se esconder, mas que, de fato, se esconderam. Como, então, segundo eles, Deus pergunta a Adão: “Onde estás?” (Gn 3,9).

4 Tivemos ocasião de tratar a fundo destas questões, em nosso comentário sobre o livro do Gênesis.

Mas aqui, para não passar totalmente em silêncio tão grave problema, limitamo-nos a lembrar a palavra proferida por Deus no Deuteronômio: “Habitarei entre eles e caminharei no meio deles” (Dt 13,14;4 cf. 2 Cor 6,16).

Seu passeio nos santos é tal qual o seu passeio no paraíso. Todo aquele que peca se esconde de Deus, foge da sua vista e se afasta da sua presença.

Assim é que “Caim saiu da presença de Deus e habitou na terra de Nod ao oriente do Éden” (Gn 4,16). Como habita nos santos, Deus habita igualmente no céu, quer o céu seja cada santo que traz a imagem do homem celeste, seja o Cristo, no qual todos os que se salvam são como luminares e estrelas do céu, ou porque os santos no céu habitam. Quando a Escritura diz: “Eu levanto os meus olhos para ti, que habitas nos céus” (Sl 122,1) ou como se lê no livro do Eclesiastes: “Não te apresses em proferir palavras diante de Deus, porque Deus está no céu e tu, sobre a terra” (Ecl 5,1), ela quer indicar a distância que há entre os que têm um “corpo humilhado” (Fl 3,21) e aquele que está entre os anjos, elevado pelo auxílio do Verbo, entre as Potências santas ou junto do próprio Cristo.

Não é, portanto absurdo dizer que o Cristo é propriamente o trono do Pai, e numa alegoria maior, recebe o nome de Céu, enquanto a Igreja se chamará Terra e escabelo dos seus pés.

5 Trouxemos estas poucas passagens do Antigo Testamento, que parecem situar Deus em um lugar material, para convencer plenamente ao leitor, segundo a nossa capacidade, que receba de modo mais elevado e espiritual a Escritura Sagrada, quando ela dá a impressão de ensinar que Deus está num lugar. Convinha ter isto presente ante as palavras: “Pai nosso, que estás no céu”, para distinguir a essência de Deus de todas as coisas criadas. Deus não partilha o seu ser com as criaturas, mas faz, por assim dizer, derivar sobre elas uma emanação da sua Divindade, algo da sua glória e poder.