Vigília de Páscoa

Agostinho de Hipona — Sermões para a Páscoa
Excertos da tradução portuguesa da introdução de Suzanne Poque

A Vigília de Páscoa

Os manuscritos dos sermões da vigília de Páscoa trazem umas vezes in vigiliis paschae, outras de nocte sancta. Na verdade, parece que Agostinho, durante a noite, cujo programa litúrgico era bem carregado, tomava a palavra várias vezes. Tradicionalmente e sollemniter, comentava numa alocução especial o próprio exercício da vigília. Quinze sermões deste tipo chegaram até nós. São os sermões dos Mauristas, 219; 220; 222; os S Dinis 2; Guelf. 4; 5; 6; Wilmart, 4; 5; 6; 7; e os Additamenta ad Sermones Wilmartianos em número de quatro. Segundo Possídio, na biblioteca de Hipona conservavam-se vinte e três Tractatus per vigílias paschae. Se pensarmos que Agostinho não pôde nesta circunstância pregar mais de trinta e nove vezes, a proporção das alocuções que se conservam é notável. Indício indubitável e prova da importância que aos olhos do pastor e dos fiéis tinha esta celebração.

O tema central é o próprio exercício da vigília. Não era a única que se fazia em Hipona. Cada igreja de África tinha neste campo suas tradições particulares. Por isso é que Agostinho, tanto para sublinhar a unanimidade das comunidades cristãs como para enunciar um argumento antidonatista, declara: in qua totus vigilat mundus, ou: cum orbe terrarum ecclesia diffusa (na qual vigia todo o mundo, ou: com o orbe das terras a Igreja dilatada por ele). Assim mostra a importância desta vigília que é «mais sagrada e mais santa» que as outras e «como mãe de todas as santas vigílias» (S 219).

No S Guelf. 5, um dos mais felizes sobre este tema, Agostinho desenvolve sucessivamente estes dois pontos: porque é que velamos? e porque é que velamos particularmente nesta data? Cada uma das homílias da Vigília, com seus cambiantes particulares e com o acento neste ou naquele aspecto, dá a esta dupla questão sua resposta. O versículo de S. Mateus 26, 41, «Vigiai e orai para não entrardes em tentação», dá a justificação mais segura das vigílias dos cristãos (S Guelf. 4; Guelf. 6; Wilm. 5; S 222; Add. ad Wilm.). Agostinho ajunta-lhes II CR 2, 27: «Com mais frequência em vigílias» (S Guelf. 4; Guelf. 5; S 219), uma só vez / Pe 5, 8 (Wilm. 6). Várias vezes comenta Efésios 6 (S Guelf. 4; Guelf, 5; S 219), provavelmente por causa do versículo 18: orantes omni tempore in spiritu et in Mo vigilantes (orando todo o tempo em espírito e vigiando nele), que aliás não cita.

Com base neste texto, o exercício da vigília aparece primeiro como luta contra o poder das trevas (S 219; 222, Wilm. 5): «Cada ano vos devemos uma exortação, a voz do pastor tem que despertar o rebanho do Senhor, para fazer frente às potestades inimigas e invejosas, aos ditadores das trevas, às feras bravas da noite (S 222). Não pode, pois, esta noite de exultação deixar de ser noite de humildade, no sentido em que Agostinho entende esta disposição da alma. «Celebremos as solenidades da humildade do Senhor, com a qual se humilhou a Sl mesmo fazendo-se obediente até à morte… Nesta noite santa humilhemos também nós as nossas almas, jejuando, velando, orando» (Add. ad Willm. 1). «Velemos humildemente, oremos humildemente com fidelíssima , com firmíssima esperança, com ardentíssima caridade» (ibid. 2). Porque o importante não é velar e, por duas vezes, Agostinho com alguns traços pitorescos bosqueja as vigílias do amor immundus (Wilm. 7; Add. ad Wilm. 3).

A Igreja vela na expectativa do seu Senhor: Efetivamente ela «durante este tempo em que percorre os séculos como em viagem através da noite, olhos postos nas Sagradas Escrituras como nas lâmpadas da noite, vela até que chegue o Senhor» (Wilm. 4).

Enfim a vigília é um exercício preparatório para a vida bem-aventurada onde o homem descansará sem nunca dormir, porque o sono é imagem da morte. O tema é muito do sabor de Agostinho, que o desenvolve no S Guelf. 5, 3, mas fala dele noutras partes: «Tal é o fruto das nossas vigílias … tal é a recompensa delas; aquele à honra do qual, lutando contra o torpor terrestre, velamos um tudo-nada, há-de dar-nos uma vida onde a vigília será sem pena, o dia sem noite, o descanso sem sono» (S Wilm. 7). Tais são as razões das vigílias dos cristãos. Os quais têm mais uma especialíssima razão de velar esta noite de Páscoa que celebra o sono do Senhor; «nesta noite em que veneramos o Senhor no sepulcro velemos no tempo em que, por nós, Ele dormiu» (S Guelf. 4, 2).

Sono e despertar de Jesus são liricamente comentados com o auxílio de uma série de versículos de salmos:

SI 3, 6: Ego dormivi et surrexi (Dormi e levantei-me; S Guelf. 4; e 6; cf. S Dinis 5, 2);

SI 40, 9: Nunquid qui dormit non adjiciet ut resurgat (Porventura o que dorme não se tornará a levantar?; S Guelf. 6; Wilm. 6; cf. S Dinis 5, 2);

SI 40, 11: Et suscita me et redda Mis (Acorda-me e eu lhes pagarei; S Guelf. 6; S Wilm. 6);

SI 120, 4: Non dormiet neque dormitabit qui custodit Israel (Não dormirá nem dormitará o que guarda Israel; S Guelf. 6; S Wilm. 7).

O mais curioso é a citação de: Sicut passer singularis super tectum (Como o pardal sozinho sobre o telhado) (SI 101, 8) que se devia ilustrar com En. in Ps. 101, I, 8 (S Wilm. 6; S Guelf. 6).

Outra ilustração é dada pelo Gênesis 49, 9: Ascendisti recumbens … Dormisti sicut leo (Subiste reclinado … Dormiste como leão) orquestrado por Ap 5, 5: Vicit leo de tribu luda (Venceu o leão da tribo de Judá; S Guelf. 6; S Wilm. 6), de que a Cidade de Deus (XVI, 41) fornece um interessante comentário.

Finalmente o versículo 25 da Epístola aos Romanos 4, está expressamente ligado ao tema: Traditus est propter peccata nostra et dormivit. Resurrexit propter justificationem nostram (Foi entregue por causa dos nossos pecados e dormiu. Ressuscitou por causa da nossa justificação; S Guelf. 4; cf. S 220; S Wilm. 4, 9).

A vitória de Cristo sobre a morte celebra-se numa alegria radiosa. As lâmpadas acesas na noite de Páscoa resplandecem como sinal deste júbilo e trazem à luz uma realidade mais esplêndida mas mais interior: «Deus, pois, que mandou à luz que brilhasse nas trevas, fez brilhar a luz em nossos corações, para se realizar em nós alguma coisa comparável ao que se passa nesta casa de oração toda iluminada com o fulgor das lâmpadas» (Addit. ad Wilmart).

Também os versículos dos salmos ilustram o comentário:

SI 138, 12: Et nox tanquam dies illuminabitur (A noite será iluminada como o dia; S 219);

Sl 17, 20: Tu illuminabis lucernam meam (Acenderás a minha lâmpada; S Guelf. 5);

SI 12, 4: Illumina oculos meos ne unquam obdormiam in mortem (Dá luz aos meus olhos para nunca adormecer na morte; Add. ad Wilm. 2; 4).

Entretanto os versículos de S. Paulo iluminam o sentido mais profundo da vigília:

II Cor 4, 6: «Deus que mandou à luz que iluminasse as trevas, ilumine os nossos corações» (S Wilm. 4, 2);

Col 1, 12: «Arrancou-nos do poder das trevas» (S 222);

Ef V, 14: «Tu que dormes, levanta-te e Cristo te dará a sua luz (Add. ad Wilm. 3);

Rm 13, 12: «Fora com as obras das trevas; vistamos as armas da luz» (S Guelf. 5, 4);

Ef 5, 8: «Éreis outrora trevas, agora sois luz no Senhor. Procedei como filhos da luz» (S 219; 222; 223);

I Tes 5, 5 «Sois filhos da luz, filhos do dia» (Add. ad Wilm. 4).

Sucedeu que às vezes a vontade de expressão brilhante levou Agostinho a um estilo de facetas , rebuscadas, mas ele habitualmente não corre atrás desse luxo inútil. A passagem vitoriosa da morte à vida, das trevas à luz, que é o motivo da alegria pascal comenta-a com desenvolvimentos belos e sóbrios.

A mais longa homília da Vigília pascal, o Sermão Dinis 2, começa por esta declaração: «Ouvimos muitas leituras divinas, a nossa prática não pode igualar a extensão delas e, quando o pudesse, a nossa atenção não o poderia sofrer.» Comenta sucessivamente o capítulo i do Gênesis, o Sl 41, 4, e o Ex 3, que parecem ser das lectiones divinae (leituras divinas) deste dia. Através de referências explícitas sabemos das leituras seguintes: Gn 1 (cf. S Dinis 2, 1), Ex 15 (cf. S Wilm. 5, 2), Is II (cf. Tract. in Jo. Ep. 1, 13), Daniel 2, 6 (Contra Litt. Pet. II, 211).

Leituras e orações parece que se alternavam: «Deus fala-nos a nós pelas suas leituras, falemos-lhe nós a Ele pelas nossas orações. Se escutarmos com obediência as suas palavras, o que nós invocamos morará em nós» (S 219).