Meditações Tarô
“Aprendei primeiro a concentração sem esforço”. Qual é o sentido prático e teórico desse enunciado?
A concentração, enquanto capacidade de fixar o máximo de atenção no mínimo de espaço (Goethe diz que aquele que quer realizar algo de sólido e hábil deve concentrar num ponto mínimo o máximo de força), é a chave prática do êxito em qualquer domínio. Neste ponto estão de acordo a pedagogia e a psicoterapia modernas, as escolas de oração e de exercícios espirituais franciscana, carmelita, dominicana e jesuíta, as escolas ocultistas de toda espécie, enfim a ioga hindu antiga e todos os outros métodos. Patanjali, em sua obra clássica sobre ioga, enuncia em sua primeira frase a essência prática e teórica da ioga — “o primeiro arcano” ou a chave da ioga — como segue: Ioga citta vritti nirodha, “a ioga é a supressão das vacilações da substância mental” — ou, em outros termos, a arte da concentração. Porque as vacilações (vritti) da “substância mental” (citta) se verificam automaticamente. Esse automatismo nos movimentos do pensamento e da imaginação é o contrário da concentração. Ora a concentração só é possível ao preço e com a condição da tranquilidade e do silêncio do automatismo do intelecto e da imaginação.
O “calar-se” precede, pois, o “saber”, o “poder” e o “ousar”. Por isso a escola pitagórica prescrevia o silêncio de cinco anos aos principiantes ou aos “ouvintes”. Ninguém ousava falar antes de saber e poder, antes de ter dominado a arte de calar-se, isto é, a arte da concentração. A prerrogativa de “falar” pertencia àqueles que não falavam mais automaticamente, movidos pelo jogo do intelecto e da imaginação, mas que podiam suprimi-lo, graças à prática do silêncio interior e exterior, e que sabiam o que diziam — sempre graças à mesma prática. O silêncio praticado pelos monges da Trapa e prescrito durante o tempo de “retiro”, de modo geral, a todos os que nele tomam parte, é a aplicação da mesma regra-verdade: “A ioga é a supressão das vacilações da substância mental” ou ainda “a concentração é o silêncio voluntário do automatismo intelectual e imaginário”.
É necessário distinguir duas espécies de concentração, essencialmente diferentes. Uma é a concentração desinteressada; a outra, a concentração interessada. A primeira é a da vontade libertada das paixões, das obsessões e dos apegos escravizadores, ao passo que a outra é o resultado de paixão, de obsessão ou de apego dominadores. Um monge no recolhimento da oração e um touro enraivecido estão concentrados, um, porque está na paz do recolhimento; o outro, porque está dominado pela raiva. Também as paixões fortes levam, pois, a alto grau de concentração. Assim os ávidos, os avaros, os orgulhosos e os maníacos denotam às vezes concentração notável. Na verdade, trata-se não de concentração, e sim de obsessão.
A verdadeira concentração é ato livre na luz e na paz e pressupõe vontade desinteressada e desapegada. Porque o fator determinante e decisivo da concentração é o estado da vontade. Por isso a ioga, por exemplo, exige a prática do iama e do niiama (iama são as cinco regras da atitude moral; niiama são as cinco regras da mortificação) antes da preparação do corpo para a concentração (respiração e posturas), e a prática de três graus da concentração como tal (dharani, dhyana e samadhi — concentração, meditação e contemplação).
São João da Cruz e santa Teresa de Ávila não se cansam de repetir que a concentração necessária para a oração espiritual é fruto da purificação moral da vontade.
É, pois, inútil o esforço para se concentrar, se a vontade está tomada por outra coisa. As “oscilações da substância mental” jamais poderão ser reduzidas ao silêncio, se a vontade não lhes infundir seu silêncio. É só a vontade silenciosa que torna efetivo o silêncio do intelecto e da imaginação na concentração. Por isso, os grandes ascetas são também grandes mestres da concentração.
Tudo isso é evidente. Mas o que nos ocupa aqui não é só a concentração em geral, mas também e sobretudo a concentração sem esforço. Que vem a ser ela?
Considerai o equilibrista na corda. É evidente que ele está completamente concentrado, do contrário, cairia por terra. Sua vida está em jogo, e só a concentração perfeita pode preservá-la.
Acreditais, porém, que o seu intelecto e a sua imaginação se preocupam com o que ele faz? Credes que ele reflete, imagina, calcula e planeja cada passo?
Se o fizer, cairá. Ele precisa eliminar toda atividade do intelecto e da imaginação para evitar a queda; precisa “suprimir as oscilações da substância mental” para poder exercer sua profissão. Durante seus exercícios acrobáticos, a inteligência de seu sistema rítmico — respiratório e circulatório — substitui a do seu cérebro. Trata-se, em última análise, de milagre — do ponto de vista do intelecto e da imaginação — análogo ao de são Dionísio, apóstolo dos gauleses e primeiro bispo de Paris, que a tradição identifica com são Dionísio Areopagita, discípulo de são Paulo. Ele teve “a cabeça separada do corpo a machadadas, diante da estátua do deus Mercúrio, mas logo se levantou, tomou a cabeça em suas mãos e, guiado por um anjo, caminhou longa distância, da colina de Montmartre até o lugar onde hoje repousam os seus ossos por escolha dele e da providência divina” (Jacques de Voragine, La Legende Dorée).
Ora, também o equilibrista, enquanto exerce o seu ofício, tem a “cabeça” — isto é, o intelecto e a imaginação — separada do corpo e caminha de um ponto a outro, levando a cabeça em suas mãos, guiado por outra inteligência, que age pelo sistema rítmico do corpo.
Para o equilibrista, para o pelotiqueiro, para o mago, a arte e a habilidade, no fundo, são análogas ao milagre de são Dionísio, porque, para ele, como para são Dionísio, trata-se da transposição do centro da consciência diretiva da cabeça para o peito — do sistema cerebral para o sistema rítmico.
Ora, a concentração sem esforço é a transposição do centro diretor do cérebro para o sistema rítmico — do domínio mental e da imaginação para o da moralidade e da vontade. (v. MAGO) […]
A concentração sem esforço — isto é, na qual não há nada a suprimir, e o recolhimento se torna tão natural como a respiração e as pulsações do coração — é o estado de consciência (do intelecto, da imaginação, do sentimento e da vontade) em estado de tranquilidade perfeita, acompanhada da distensão completa dos nervos e dos músculos do corpo. É o silêncio profundo dos desejos, das preocupações, da imaginação, da memória e do pensamento discursivo. Dir-se-ia que o ser todo se tornou como a superfície de águas tranquilas refletindo a presença imensa do céu estrelado e de sua indizível harmonia. As águas são profundas, e como são profundas — e o silêncio aumenta, aumenta sempre, e que silêncio! Seu crescimento realiza-se por ondas regulares que passam, uma após outra, através de vosso ser: uma onda de silêncio, seguida de outra onda de silêncio mais profundo, depois outra onda de silêncio ainda mais profundo. Já bebestes do silêncio alguma vez? Se a resposta for afirmativa, sabeis o que é a concentração sem esforço.
No começo, o silêncio completo ou a “concentração sem esforço” duram instantes, depois minutos, depois quartos de hora. Com o tempo, o silêncio ou a concentração sem esforço se tornam o elemento fundamental sempre presente na vida da alma. É como o ofício perpétuo na igreja de Sacré-Coeur de Montmartre, que se verifica enquanto em Paris trabalha-se, circula-se, diverte-se, dorme-se, morre-se… É assim que o ” ofício perpétuo” do silêncio se instala na alma e prossegue até quando ela está em atividade, trabalhando ou conversando.
Uma vez estabelecida essa “zona de silêncio”, podeis haurir dela tanto para o repouso como para o trabalho. Tereis então não só a concentração sem esforço como também a atividade sem esforço.