Joaquim de Fiore — Introdução ao Evangelho Eterno
O abade Joaquim de Fiore distingue as três idades da humanidade
Excertos de seleção de Pierre Riffard, em seu livro “O Esoterismo”, traduzido por Yara Azeredo Marino e Elisabete Abreu
O primeiro dos três estados do mundo1 se desenrolou sob o reinado da fé, quando o povo eleito, ainda fraco e escravo, não era capaz de alcançar a libertação, e continuou até vir Aquele que disse: “Se, portanto, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres”.2 O segundo estado foi instaurado pelo Evangelho e dura até o momento presente, conduzindo à verdade, redimindo com relação ao passado, mas de modo algum no que diz respeito ao futuro. Porque o apóstolo disse: “A nossa ciência é parcial, a nossa profecia é imperfeita. Quando chegar o que é perfeito, o imperfeito desaparecerá”.3 E em outro lugar: “Ora, o Senhor é Espírito e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”.4 Em seguida, o terceiro estado começará no fim do século em que vivemos.5 Já sentimos que se revela, em plena redenção espiritual, pois o falso Evangelho do filho da perdição será anulado e destruído assim como o seu profeta.6 Aqueles que se instruirão na justiça serão numerosos e eis que se manifestarão semelhantes ao esplendor do firmamento, eis que brilharão como as estrelas nas perpétuas eternidades. O primeiro desses estados, que brilha sob o signo da Lei e da circuncisão, foi instaurado por Adão. O segundo, que brilhou sob o signo do Evangelho, foi instaurado por Ozias. O terceiro, cujo cálculo das gerações nos permite fixar a data de preparação, foi instaurado por são Bento,7 cuja excelência só será perfeitamente compreendida por volta do fim dos tempos, quando Elias retornar, e quando o incrédulo povo judeu voltar a Deus.8 Quando o Espírito Santo surgir e clamar em sua potentíssima voz: “O Pai e o Filho agiram até agora. Agora eu agirei”. Porque o Antigo Testamento, considerado, ao pé da letra, parece claramente pertencer ao Pai; o Novo Testamento parece, do mesmo modo, pertencer ao Filho; mas o entendimento espiritual de um e de outro se origina do Santo Espírito.
Desde o início, a ordem dos esposos caracteriza o primeiro estado e depende do Pai. A ordem dos clérigos, que caracteriza o segundo estado, depende do Filho. A ordem dos monges, enfim, aos quais são providas as grandes idades do fim dos tempos, depende do Espírito. Segundo esse sistema, fica claro que o primeiro estado se relaciona ao Pai, o segundo ao Filho e o terceiro ao Espírito. Ainda que sob um outro ponto de vista o estado do mundo seja efetivamente único e que seja único o povo dos eleitos, não creio aqui adiantar uma hipótese imprudente.9 O tempo percorrido antes da Lei, o tempo decorrido sob o signo da Lei, o tempo decorrido sob o signo da Graça se fizeram necessários: devemos então ter por não menos necessário um outro período de tempo. Houve o tempo da Letra. Eis que virá o do Espírito, o momento da compreensão espiritual e da manifesta visão de Deus.
Gérard de Borgo San Donnino, Introdução ao Evangelho eterno (1254), trad. do latim: E. Aegerter, Joaquim de Fiore, t. II: L’Évangile éternel, Rieder, 1928, p. 90-92.
Notas de E. Aegerter
O nome de Joaquim de Fiore está associado ao Evangelho eterno, ainda que a obra intitulada Introdução ao Evangelho eterno seja de seu discípulo Gérard de Borgo San Donnino, que compilou sob esse título as obras principais do mestre: Psaltérion à dix cordes, Concordance des deux testaments e Commentaire de l’Apocalypse. ↩
Jo, 8, 36. ↩
I Cor, 13,9. ↩
Ibid, 3, 17. ↩
Por volta de 1260, conforme os cálculos de Joaquim de Fiore. ↩
Mat, 24, 24: “…porque se levantarão falsos cristos e falsos profetas”, e Apoc, 13, 11-15. A época da repressão do movimento cátaro e da luta dos espirituais em favor da “pobreza meritória”, esta frase está carregada de subentendidos. Não faltaram intérpretes que identificaram a Igreja romana com a besta do Apocalipse. ↩
Joaquim de Fiore é, enquanto abade de Corazzo, monge beneditino, pois os cistercienses (nome da abadia de Cíteaux, fundada por Robert, abade de Molesme, em 1098, e ilustrada por são Bernardo de Claraval), ou ‘monges brancos’, são provenientes de uma reforma da congregação de Cluny (os ‘monges negros’), a qual adota a regra de são Bento de Núrsia, que fundou no século VI, no monte Cassino, a primeira das abadias do Ocidente. ↩
Trata-se evidentemente da recusa dos judeus em reconhecer o Messias em Jesus e não de sua falta de fé em Deus. A conversão do povo judeu ao cristianismo é um dos eventos que anunciarão o fim do mundo segundo uma tradição que remonta ao próprio Apocalipse (capítulo VII). O profeta Elias, levado ao céu em um carro de fogo (II Re, 2, 11), voltará na mesma equipagem no fim dos tempos, segundo a tradição hebraica retomada pelos cristãos. ↩
Segundo o procedimento de instrução da Inquisição (fundada em 1184), uma proposição é imprudente ou ‘temerária’ se é suscetível de levar os fiéis à heresia, sem que ela mesma seja literalmente herética. Foi contra esse perigo que se preveniu Joaquim de Fiore. Ele seria herético ao crer que há eleitos de muitas categorias (os justos diante de Jesus, os sábios pagãos que o ignoram etc.) ou que o mundo trocou de estado desde a queda original. ↩