O que é um homem que não é um eu, um homem esvaziado de sua capacidade de se experimentar a si mesmo e, assim, de “viver”? No fundo, isso implica perguntar: O que é um homem reduzido à sua aparência na verdade do mundo? Um autômato, um complexo de computadores, um robô – uma aparência exterior de homem sem o que faz [371] dele um homem. O que faz dele um homem: o Si transcendental. Nenhum Si transcendental, no entanto, traz a si mesmo à condição que é a sua. Dado a ele mesmo e experimentando-se a si mesmo na autodoação da Vida absoluta e nela somente, todo Si transcendental é Filho desta vida.
Filho da Vida ou autômato – aí está o que João percebe no fulgor da visão profética. O autômato é a Besta – nem sequer a Besta, para dizer a verdade. Pois a Besta contém ainda uma referência oculta ao que seria algo como esta subjetividade vivente e harmoniosa que nos habita, esta subjetividade fenomenológica que faz de nós seres de Luz no seio mesmo de nossa Noite. A Besta ainda arremeda a vida. O que se propõe e se define como o homem esvaziado do que faz dele um homem, isso não é portanto a Besta, isso não é nem sequer o Monstro. Não é a Besta monstruosa que fazia fremir Marx quando, entrando numa indústria mecânica de seu tempo, ele via no dispositivo material a funcionar sozinho uma espécie de caricatura aterrorizante do agir humano, do “trabalho vivente”. Pois, quando o dispositivo material que funciona sozinho é realmente separado de toda relação com uma atividade humana qualquer e se define por essa exclusão, então já não é de uma Besta que se trata, mas daquilo mesmo que, estranho a todo sentir, a todo agir, a todo viver, à capacidade de se experimentar a si mesmo, se comporta, no entanto, como algo que age. O que o olhar inquieto de Descartes chamava pelo nome que se dava em sua época, “autômato”, João o percebe em sua nudez, despojado do que seria ainda a condição subjetiva desse funcionamento, desse “automatismo”: não a Besta, mas sua cópia inerte, inanimada, a “imagem da Besta” (Apocalipse 13,15).
“Autômato”, “imagem da Besta”: com que condição? Com a condição de que todo Si transcendental seja destruído, aniquilado – negado. Mas como um Si transcendental pode ser negado? Ele o é se as condições são as expostas pelo nascimento transcendental deste Si sem o qual nenhum homem é possível. Elas remetem à geração do Primeiro Si na Ipseidade original em que a Vida se autogera a si [372] mesma: a Cristo. Aquele que nega não a existência do homem, mas sua própria possibilidade, aquele que enceta o processo de eliminação principiai e a priori do homem – eliminação que precede e leva à eliminação efetiva e radical de todos os homens –, é este mesmo que nega a Cristo: o Anticristo. (Michel Henry MHSV)