José A. de Aldama — Maria na Patrística dos séculos I e II
Contribuição e tradução de Antonio Carneiro
Introdução
A produção teológica sobre o mistério de Maria tem sido surpreendentemente abundante desde os anos que se seguiram à primeira guerra mundial. É o período histórico que se viu florescer as sociedades mariológicas, as revistas especializadas, as cátedras e institutos, os congressos mariólogicos internacionais; e tudo isso produziu, naturalmente, muitas páginas de teologia e numerosos estudos sobre Maria.
Era óbvio que nesse florescimento estiveram representados, ainda que fosse desigualmente, os diversos aspectos de uma verdadeira teologia mariana. O fenômeno tinha que estar, por força, condicionado por fatores ambientais muito diversos, e as diferenças se acusam com inconfundível destaque.
Dentro dessa profusão de literatura teológico-mariana, não foi precisamente a patrística o campo que se dedicou uma atenção mais preponderante e decisiva. Não é que faltem estudos esporádicos, alguns seguramente beneméritos, o mesmo em relação aos Padres sobre as idéias e as doutrinas. O que não se empreendeu ainda sistematicamente sobre bases cientificamente sólidas foi a tarefa de traçar com possível segurança a linha do desenvolvimento histórico dos dogmas marianos.
A obra de Neubert1 sobre a Mariologia anteniceiana, tentativa realmente interessante, já está demasiadamente longe. as páginas sérias de Mons. Joussard na enciclopédia do P. Du Maior constituem uma orientação certeira em muitos aspectos; mas não pretenderam nunca oferecer um estudo detalhado. Menos ainda são outros trabalhos de conjunto, como o de Hilda Gräff2 ou de Delius; para não falar dos artigos de diversos dicionários teológicos.
Por outro lado, a história literária da primitiva literatura cristã, muito especialmente a de suas origens, está hoje totalmente renovada com os descobrimentos de Qumran e Nag Hamadi, com nova perspectiva do judeu-cristianismo, com os estudos sobre o gnosticismo, com os trabalhos sobre o texto bíblico e os “ Testimonia” , com a visão até hoje inédita da primeira escola asiática.
Acrescentam-se a tudo isso as novas edições críticas, os trabalhos de fixação de fontes, de datação, de influxos e dependências.
Toda essa realidade múltipla, ricamente renovada, principalmente após a segunda guerra mundial, há de se incorporar metodicamente na investigação da primitiva Marialogia.
As páginas que seguem pretendem apresentar em suas origens os diversos temas dogmáticos e teológicos que oferecem o mistério de Maria. Os séculos I e II, a partir da imagem que nos deixaram os escritores sagrados, são de importância decisiva para ahistória da Marialogia posterior. Interessa, principalmente ao teólogo, descobrir com objetividade e verdade, sem apriorismos anticientíficos, nem favoritismos anacrônicos, essas origens veneráveis, desde os que fluem as águas abundantes e homogêneas da teologia mariana.
Temos adotado um método que prefere o estudo dos temas ao dos autores. O método inverso teria tido a vantagem de dar em seu conjunto a visão que cada escritor formou de Maria. Mas, como nossa intenção se orienta para a primeira apresentação dos dogmas e da teologia mariana na literatura cristã, consideramos que é definitivamente mais proveitoso pesquisar historicamente o desenvolvimento dos próprios temas, crendo que a homogeneidade da época a que se circunscreve nosso estudo e os limites temporais suficientemente restringidos que abarca, evitam perigos de dispersão dentro da visão completa de cada escritor.
A época estudada vai desde as origens da literatura cristã post-bíblica até a morte de São Irineu. Deixamos de lado autores como Clemente, que estudar-se-á melhor dentro da escola alexandrina, ou como Tertuliano, que, apesar de sua preocupação anti-gnóstica, inaugura melhor, no Ocidente, uma época posterior.
Por outro lado, queremos enquadrar em nosso estudo não somente os escritos de grandes autores ( Inácio, Justino, Melitão, Irineu), mas também a chamada literatura apócrifa ou pseudo-epigráfica, que tanta atenção prestou a figura de Maria. Essa literatura oferece evidentemente problemas difíceis de valoração teológica e de datação. Mas uma investigação histórica que pretenda apresentar a visão do mistério de Maria tal como apareceu para a cristandade dos séculos I e II, não pode em absoluto prescindir dela. As afinidades ambientais dela com os escritos dos Padres são demasiadas para que se possa permitir impunemente um corte arbitrário contra o método histórico. Mais de uma vez, através de fórmulas literárias diferentes, aparecem semelhanças doutrinais que, na linha do desenvolvimento histórico, podem significar avanços de importância. É bem sabido que os grandes autores não são frequentemente os iniciadores, mas sim exploradores felizes e inteligentes do que outros, menos célebres hoje, intuiram ou balbucearam. Dentro dessa literatura “ apócrifa” , cujo estudo está hoje grandemente renovado, deve citar-se no posto de distinção ao mal denominado “ Protoevangelho de Santiago” , cujo título verdadeiro é a “Natividade de Maria” . A essa primeira monografia mariana do último quarto do século II (que já por isso exigia uma atenção particular de nossa parte) não a consideraram os Padres gregos como mais um apócrifo, mas sim que a reconheceram uma especial autoridade, apesar do caráter popular e ingênuo de suas narrações. acima dos resíduos históricos que possam ficar no fundo dessas narrações (resíduos que parecem existir realmente, mas que é muito difícil, talvez impossível, determinar), tem nessa primeira consideração sobre Maria como objeto central de uma obra escrita, não somente uma conotação literariamente nada depreciável, mas sim também uma visão teológica que é fruto maduro e é síntese profunda de todo um século de teologia mariana.
Os textos que nessa época nos falam de Maria não são muitos. Mas sua importância histórica e teológica é tão destacada, que tem sido objeto de inumeráveis estudos por parte dos patrólogos e de mariólogos. Nenhuma dessas publicações pode alegremente desconhecer-se, por mais que seu valor tenha que ser inevitavelmente muito desigual. Parece chegado o tempo de passar-lhes revista uma por uma, a fim de recolher o fruto de tantos esforços com a objetividade que impõe um sério método histórico. Muitas de nossas páginas voltam a considerar essas interpretações, que mais de uma vez não nos resultam aceitáveis ou preferíveis. Mas, se conseguirmos hoje chegar a conclusões mais sólidas, esse resultado não teria sido possível sem que tantos autores tivessem arado pela primeira vez o caminho em diversas direções. Todo trabalho sério de pesquisa histórica é o que fazer de muitos pesquisadores; seria néscio não reconhecer as dívidas contrídas com todos eles. a lealdade que devemos ao que objetivamente nos parece verdade (sem que pensemos nunca em dizer a última palavra), não diminue a estima sincera que guardamos para todos os que nos precederam nesta taref ; diríamos melhor que acrescenta ao por-nos em contato com textos complexos e frequentemente difíceis de interpretar, ainda que fosse somente por sua distância histórica.
A necessidade de examinar em detalhe as diversas interpretações que que se deram à muitos de nossos documentos porá por força um lastre no curso de nossa exposição pessoal. Mas acreditaríamos ter sido injustos com escritores e trabalhos beneméritos se os tivéssemos deixado de um lado sem examiná-los com a devida seriedade.
Mais de um tropeçará também na abundância das análises detalhadas, que julgará excessiva. E talvez poderá sê-la. Mas, cremos que é preciso insistir em que a síntese se apóie solidamente em uma análise séria e objetiva; sobretudo quando de outro modo puderam chegar a se construir sínteses excessivamente fáceis ( e nos parece que não se trata de uma pura hipótese ), com grave detrimento para a verdadeira Mariologia histórica, cujas águas primeiras ficariam sem remédio contaminadas desde sua fonte.
Finalmente, um teólogo católico não pode escrever a história dos dogmas marianos deixando-se guiar com exclusividade absoluta por um método puramente positivo e histórico. O sentido da tradição viva da Igreja tem que acompanhar-lhe sempre em seu estudo. Não para viciar a verdadeira pesquisa contaminando desde fora a interpretação austera da linha histórica; mas sim para utilizar um elemento mais, de valor incalculável, na tarefa sutil de surpreender um sentido às vezes apenas perceptível, no que, entretanto, bate realmente a fé perene da Igreja.
Notas:
Refere-se à obra de Emile Neubert, “ Marie dans l’Eglise anténicéenne” , Paris, Gabalda, 1908, tese de doutorado, sua primeira contribuição em teologia, que toma como ponto de partida, após pesquisa histórico-crítica, os escritos evangélicos relativos ao nascimento de Cristo até o início do Concílio de Nicéia (325), se confrontando com a crise ariana. Apresenta a identidade de Cristo baseado nos Padres e autores antigos, à origem do Símbolo dos Apóstolos. Neste movimento dinâmico, aparecem os primeiros elementos do dogma mariano, desde os primeiros séculos. Será necessário alcançar o Concílio de Éfeso (431) para ser definido o dogma da maternidade divina.
Para os que quiserem se aprofundar sobre o autor e sua obra recomenda-se o trabalho :
P. Jean-Louis Barré, S.M. — La mission de la vierge Marie d’après les écrits d’ Émile Neubert, S.M. (1878-1967) — Tesi di Laurea in Sacra Teologia con specializzazione in Mariologia — ROMA — 2007. in: Dissertationes ad laurem in Pontifícia Faculatate Theologica “ Marianum” — no seguinte site:
http://docteurangelique.free.fr/livresformatweb/theses/MarieNeubert2008.htm#_ftnref111Duas partes são propostas: “ Marie dans le dogme” e “ Marie dans la piété” , nas quais aparecem os temas essenciais — maternidade humana, concepção virginal, maternidade divina, Maria no símbolo, virgindade, santidade, cooperação para a Redenção, veneração e invocação — que farão objeto de nosso estudo presente sobre Maria. Mesmo se a fronteira entre as duas partes não pareçam de forma alguma evidente, deixa-nos entrever que o próprio título de Theotokos, consagrado à Éfeso, era já conhecido desde então, conjuntamente com a ideia do concurso de Maria à obra de nossa salvação, e aqui bem antes do concílio de Niceia (325)
Bibliografia:
Emile Neubert, Marie dans le dogme, Paris, 1933.
Emile Neubert, Vie de Marie, Mulhouse, Salvator, 1936.
Emile Neubert, Notre Mère : Pour la mieux connaître, Le Puy, 1941
Emile Neubert, Un prêtre de Marie. Le Père Joseph Schellhorn, Paris, 1948.
Emile Neubert, De la découverte progressive des grandeurs de Marie. Application au dogme de l’Assomption, Paris, 1951.
Emile Neubert, Marie et notre sacerdoce, Spes, Paris, 1952.
Emile Neubert, Notre Don de Dieu, Paris/Tours, 1954.
Emile Neubert, La mission apostolique de Marie et la nôtre, Paris, 1956.
Emile Neubert, Mon Idéal, Jésus Fils de Marie, Canada, 2003. ↩
A grafia Gräff é em alemão quando se adapta para outro idioma fica Graef como é o caso do idioma inglês. Para dados biográficos em ingles vide http://www.catholicauthors.com/graef.html.
A seguir alguma bibliografia:
a) Hilda Graef; Thomas A. Thompson: Mary: A History of Doctrine and Devotion, Ave Maria Press, 2009, 608 p. ISBN: 0870612522 ISBN-13: 9780870612527
The best survey of the state of Marian studies at the time of Vatican II has now been updated by Thomas A. Thompson. Incisive observations on a full range of apologists, theologians, poets, liturgies, feasts, popular devotion, apocryphal literature, apparitions, and papal teaching. An important reference. 577 pages, softcover. Christian Classics.
In this classic text in the field of Marian scholarship, Hilda Graef provides a look at the place of Mary in the Church, and a chronological overview of the history of Marian studies. This revised and updated edition of Mary: A History of Doctrine and Devotion now features an extended final chapter and new introduction by Thomas A. Thompson, S.M., director of the Marian Library at the University of Dayton. This book is a must-have reference resource for Marian scholars and for lay readers curious about Marys place in scripture and Church history.
b) Altaner, Berthold. Patrology. Hilda C. Graff, trans. Westminster, MD: Herder & Herder, 1960.
Essential introduction to the writings of the early Christian peacemakers, arranged by individuals, providing a listing of works, translations, and scholarship.
b.1) Berthold ALTANER / Hilda GRAEF, Patrology (1960). Chapter V, PP. 166-182 vide o site :
http://www.tertullian.org/articles/altaner_patrology_eng.htm
c)
Histoire De La Mystique — Hilda Graef, Ed. Seuil, poche, collection Livre De Vie (112) , 1972, ISBN 2020005638d) The Scholar and the Cross, by Hilda C. Graef
On the evening of August 2, 1942, the doors of the Carmelite convent in the Dutch village of Echt opened, and a middle-aged nun calmly stepped from within the enclosure accompanied by two Gestapo officers. She walked with them a short distance to a long, sleek sedan, surrounded by an excited, protesting crowd. Born Edith Stein to Jewish parents in Germany, now Sister Teresa Benedicta of the Cross, she was taken first to a concentration camp in Westerbork. Then, several days later, one of her former pupils from her days as an agnostic philosophy professor — before she became a Catholic and, later, a Carmelite nun — saw her on the station platform at Schifferstadt. “Give my love to the sisters at St. Magdalena,” Sister Benedicta bade her. “I am traveling eastward.” On August 9, 1942, the Vigil of St. Lawrence, Edith Stein and her sister Rosa disappeared into the gas chamber at Auschwitz.
In The Scholar and the Cross, the noted Catholic writer of the mid-20th century, Hilda C. Graef, masterfully fleshes the bare outline of what is known of Edith Stein’s life into a superb and moving biography. In her book, originally published in 1955, Miss Graef drew on previously unpublished material supplied by Sister Benedicta’s friends. The Carmelite nuns at Cologne and Echt answered her questions and shared their reminiscences, as did family members, friends and former students and their parents. Miss Graef combines the sketchy facts of Edith Stein’s life with her research, and in the words of Commonweal, adds “her own gifts of insight and interpretation.” The result is a commanding portrait of an exceptional woman and a great Catholic whom Time magazine called “one of the most remarkable women of her time” — and who was canonized by Pope John Paul II in 1998.
e) 18. St. Gregory of Nyssa: The Lord’s Prayer, The Beatitudes (Ancient Christian Writers) (Hardcover), Hilda GRAEF, Ed. Paulist Pr, 1954, ISBN: 0809102552 WAPI (Tower ID): 100522950
f) The Commonsense Book of Catholic Prayer and Meditation (Paperback), Hilda C. GRAEF Ed. Sophia Inst Pr, 2002, ISBN: 1928832512 WAPI (Tower ID): 100528518 ↩