Manuel João Ramos
Excertos de “Ensaios de Mitologia Cristã”
As personagens identificadas com os nomes de Judas e de Tomé são, no Evangelho segundo João, funcionalmente assimiláveis. As suas palavras e ações remetem para o mesmo contexto temático; isto é, reflectem uma posição de questionamento da verdadeira via de acesso a Deus-pai, que é, neste texto, clara e insistentemente, o da crença na consubstanciação humana e divina do Filho. A técnica de duplicação dos personagens, que é recorrente no processo de elaboração dos evangelhos canônicos1, ao ser, em João, aplicada a estes discípulos, resulta numa manipulação textual tendente a sublinhar uma argumentação anti-gnóstica (relacionada com o dogma da encarnação), aqui particularmente incisiva. Não é nos termos de uma exigência de distinção (por uma gnosis) entre Aparência visível / Imagem real invisível, mas segundo o primado do «testamento» — isto é, da crença no testemunho apostólico —, que João apresenta a problemática do acesso dos «filhos da luz» à divindade (daqueles que passaram da morte para a Vida). João inverte, assim, o sentido da proposta gnóstica, que, de algum modo, é pressentida na caraterização da figura do incrédulo Tomé: não se trata de crer na distinção entre aparência física (humana) e imagem real (divina), para conhecer a realidade não visível de Deus, mas de ver que a aparência física de Jesus e a sua imagem real coincidem2; isto é, que a ressurreição é consubstancial, e não é preciso «ver» (conhecer pela gnose) a imagem real, mas que basta crer nos que viram e ouviram, e «dão testemunho» da palavra divina.
À distinção onomástica entre um Judas («não Iscariotes») que, antes da crucificação, questiona Jesus sobre a verdadeira Via, e um Tomé («o chamado gémeo») que questiona, depois da ressurreição, a validade da via da reencarnação, (duvidando dos testemunhos dos condiscípulos), subentende-se uma figuração funcional comum (homotí-pica). Sendo aceite, como hipótese de trabalho, a ideia de que a distinção Judas-Tomé resulta da duplicação de uma personagem única, é possível sugerir, mais geralmente, que ela é, em si, função de uma complementaridade estrutural importante entre duas figuras homónimas: Judas, «o gémeo» (Tomé), e Judas, «o sicário» (Iscariotes). Em consequência da uniformização dos textos canônicos, que afeta particularmente os episodios da Paixão (Crossan, 1994:405, 423 segs.), e da inclusão da «traição de Judas (Iscariotes)» (que transfere para si a identificação ao «bode-expiatório»), a primeira componente do nome de Tomé é omitida e substituída por um título pleonástico, retendo assim integralmente o episodio, importante na economia retórica de João, da incredulidade do discípulo3.
Como foi observado anteriormente, o destino de Judas Iscariotes é «gemelar» em relação ao de Cristo: ele é uma vítima substitutiva, diabolizada, que permite transformar a crucificação, de «morte maldita» (sacrificio expiatorio), em «morte bendita» (sacrificio redentor que inaugura a nova Aliança). Articulada com a exigência de estabelecimento de uma «vítima expiatoria», a presença, em João, das duas figuras («o sicário» e «o gémeo»), vem pontuar, uma no início da Paixão, a outra no final, o período da disjunção entre Carne (humana) / Espírito (divino) que afeta Jesus. Judas Iscariotes testa a consubstanciação divina em Jesus, causando a sua morte na cruz; (Judas) Tomé testa a sua consubstanciação humana, duvidando da ressurreição «em carne». Ou seja, um e outro sublinham, pela traição e pela descrença, a exigência da crucificação para tornar possível uma ressurreição consubstancial — ou seja, têm, ad contrario, essa função na construção dos episódios. A mensagem inclusa na argumentação de João é, em relação a esta questão, a seguinte: não crer na ressurreição da carne consubstanciada no Espírito divino e na necessidade da crucificação, tomada como sacrifício preparatório dessa consubstanciação plena, significa trair a «verdadeira» mensagem cristã — nesta medida, (Judas) Tomé, o discípulo incrédulo, age como Judas Iscariotes, o discípulo traidor.
Estes esclarecimentos permitem enquadrar a questão levantada inicialmente. Apresentado em oposição correlativa a Judas Iscariotes, no episódio da última ceia, e a Tomé, na segunda aparição após a ressurreição de Jesus, o «discípulo que Jesus amava» é aquele que, encostando a cabeça no flanco de Jesus, lhe pede que denuncie o traidor — o que causa a entrada de Satanás no corpo de Judas (João, XIII, 23-27), e aquele que, por oposição à atitude de Tomé, reconhece imediatamente a aparição na praia como sendo «o Senhor» (João, XXI, 7). Sendo o «discípulo que Jesus amava» uma figura que intervém para marcar um distanciamento entre os dois Judas («o sicário» e «o gémeo») e Cristo, é importante evidenciar uma caraterização que lhes é exclusiva, em João. Estes três discípulos são marcados por uma expressa proximidade física em relação ao corpo de Jesus: o primeiro encosta a cabeça ao seu peito, o segundo come do seu prato e beija-lhe a face, o terceiro toca com a mão o seu flanco.
O Evangelho segundo João contrapõe uma visão sapiencial anti-gnóstica à mensagem sapiencial gnosticizante do Evangelho de Tomé, onde a figura do «discípulo que Jesus amava» é claramente Judas Tomé, o gémeo de Cristo. A identificação, pela ortodoxia cristã, da figura que surge em João oposta a Judas-Tomé com o seu suposto autor (João Evangelista) é consentânea com uma convergência notável nas elaborações simbólicas dos dois apóstolos. Esta convergência sugere uma certa comutabilidade entre o «gémeo de Cristo» do Evangelho de Tomé e dos Atos de Tomé, e o apóstolo conhecido como a «águia de Patmos» das tradições literárias dos Atos de João, de Do nascimento, vida e morte dos santos, de Isidoro de Sevilha, e da Lenda áurea, de Giaccomo de Voragine.
NOTAS
Os processos de duplicação caraterial de personagens homonímicas e de distinção onomástica de personagens homotípicas resultam na criação de pares com caraterísticas opositivas simples ou marcadamente complementares. Cfr. Leach & Aycock, 1983:48-52. ↩
Por um lado, Jesus é apresentado como o «pão do espírito» (João, VI, 22), por outro, o texto insiste em que a sua carne é «verdadeiramente» comestível (VI, 53-56) sobre os contornos políticos e doutrinais do confronto entre cristãos gnósticos e ortodoxos, cfr. Elaine Pagels, 1990:38, 41, 129 segs.; sobre as implicações da doutrina da ressurreição do corpo na história do cristianismo ocidental cfr. Bynum, 1995. ↩
De acordo com a ideia de que a credibilidade das versões é menos questionada perante a omissão de parte de um nome que perante a sua modificação total: «(Judas) Tomé, o chamado (em grego) gémeo». ↩