Joaquim Carreira das Neves — Escritos de São João
Sinal do Cego de Nascença (Jo 9, 1-41)
Nesta unidade narrativa, Jesus começa por curar um cego de nascença, depois dum breve diálogo com os discípulos sobre a razão de ser da doença (Jo 1-7).
Segue-se um diálogo entre os vizinhos e os conhecidos do cego, habituados a encontrarem-se com ele a mendigar, espantados pelo acontecido (vv. 8-12). Perguntam ao cego como é que tudo aquilo aconteceu e ele responde: Esse homem, que se chama Jesus, fez lama, ungiu-me os olhos e disse-me: ‘Vai à piscina de Siloé e lava-te.’
De seguida, estes vizinhos e conhecidos levam o cego aos fariseus que criticam o taumaturgo, ainda sem o conhecerem, por fazer semelhante ação em dia de sábado (Jo 13-17). Os fariseus dizem que um homem destes não pode ser de Deus, enquanto que o cego responde:”Como pode um homem pecador realizar semelhantes sinais miraculosos?” (Jo 16b). Para os fariseus é um pecador e para o cego curado é um profeta.
Diante deste impasse, os judeus, que não acreditam, mandam chamar os pais do cego curado (Jo 18-23) que atestam sobre a verdade do seu filho como tendo nascido cego e agora curado, mas recusam-se a responder sobre quem o curou e o modo da cura. Que perguntem ao filho, que já tem idade para falar de si. Mas respondem desta maneira por receio dos judeus, pois estes já tinham combinado expulsar da sinagoga quem confessasse que Jesus era o Messias.
Os judeus chamaram novamente o cego (Jo 24-34), pedem-lhe explicações e estabelece-se um diálogo de “surdos”. Os fariseus fixam-se na ideia de que se trata dum pecador porque eles são discípulos de Moisés que proíbe qualquer ação em dia de sábado. Só conhecem Moisés, e não sabem donde é que proveio o taumaturgo do cego de nascença, ao que este responde:”E de espantar que não saibais donde é que ele é, e me tenha dado a vista!… Se este não viesse de Deus, não teria podido fazer nada” (Jo 30-33). Os judeus terminam por classificar o cego como alguém que “nasceu coberto de pecados” e puseram-no fora do Templo.
Finalmente, Jesus dá-se a conhecer ao cego como Filho do Homem (Jo 35-38), que lhe pede para acreditar, o que acaba por acontecer: “Eu creio, Senhor!”
A narrativa termina nos vv. 39-41 com um pequeno monólogo de Jesus sobre a sua ação como juízo universal (de modo que os que não veem vejam, e os que veem fiquem cegos) e um pequeno diálogo com os fariseus que se sentem atingidos com o seu monólogo, ao que Jesus responde:
Se fôsseis cegos, não estaríeis em pecado; mas, como dizeis que vedes, o vosso pecado permanece.
A narrativa recebe um colorido muito próprio devido à variedade dos intervenientes: cego de nascença, discípulos, vizinhos e conhecidos, fariseus, judeus, pais do cego…A maneira de Jesus curar o cego também é “estranha”: cuspiu no chão, fez lama com a saliva, ungiu-lhe os olhos com a lama e disse-lhe: Vai, lava-te na piscina de Siloé (vv. 6-7).
Toda a narrativa se processa de modo analéptico porque embora o nome de Jesus apareça na boca do cego no v. 11, tudo acontece como se ninguém o conhecesse. A intenção do autor-narrador é conduzir a “intriga” narrativa até à confissão de fé do cego não na simples pessoa humana de Jesus, mas na pessoa do Filho do Homem, diante do qual o cego se prostra em adoração:”Eu creio, Senhor!” E se Jesus é o Filho do Homem também é o juiz do mundo (Eu vim a este mundo para proceder a um juízo), a começar por ser o juiz dos fariseus (Se fôsseis cegos, não estaríeis em pecado; mas, como dizeis que vedes, o vosso pecado permanece).
A perícope abre com uma determinante temporal e local, depois da afirmação do narrador da narrativa anterior (Jo 8,59): Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença (Jo 9,1). Jesus fora expulso do templo, mas, ao ver o cego de nascença, em vez de se esconder, como narra o texto de Jo 8, 59, para, dialoga com os discípulos, cura o cego, dialoga com fariseus, judeus e cego. E tudo quanto acontece é em função da declaração introdutória de Jesus: Tenho de realizar as obras daquele que me enviou enquanto é dia. Vem aí a noite, em que ninguém pode atuar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo (vv. 4-5). A cura do cego e todos os diálogos com os diferentes actantes funcionam para justificar esta declaração-revelação de Jesus.
Não devemos perder de vista que todas as ações e declarações de Jesus, a começar no capítulo sétimo até 10, 22 têm lugar no Templo, durante a festa dos Tabernáculos. O que se segue depois de 10, 22 relaciona-se, ainda no Templo, com a festa da Dedicação. Como o Templo era o coração do judaísmo, o Jesus joanico centraliza aí a sua revelação para declarar que, a partir de agora, a vontade do Pai–Deus é outra: Tenho de realizar as obras daquele que me enviou enquanto é dia… enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo (v. 4). Por isso, Jesus começa por não aceitar a doutrina clássica que relacionava a doença com o pecado (v. 3: Nem pecou ele, nem os seus pais…), embora a questão já fosse colocada no grande livro de Job e em Ez 18. Tudo acontece para nele se manifestarem as obras de Deus (v. 3b).
Os autores costumam relacionar os dois “sinais”, o da cura do paralítico da piscina de Betzatá (Enfermo de Bezata Jo 5,1-47) e o do cego de nascença como os que melhor conciliam a arte literária com a cristologia-teologia. Os diálogos e monólogos são um autêntico monumento à arte retórica a favor da apologética da catequese cristã, cheios de ironia e de exemplaridade. Trata-se de duas curas de doentes físicos, em dia de “sábado”, de duas “piscinas”, de pessoas que, humanamente falando, não tinham qualquer hipótese de cura, que desconhecem quem o curou, quem é e de onde veio. Só mais tarde é que Jesus aparece aos dois homens e estes apresentam Jesus como o enviado de Deus. Mesmo assim, o mais importante das duas narrativas não reside na cura mas no “sinal” consubstanciado nos diálogos e monólogos de Jesus sobre a sua relação com o Pai-que-o-enviou para operar as obras do mesmo Pai e, através delas, estabelecer o juízo escatológico.
Em 9, 22-23, os pais do cego de nascença recusam-se responder aos judeus “por medo dos mesmos judeus, que expulsavam da sinagoga quem confessasse que Jesus era o Messias”. Já sabemos que semelhante resposta não podia ter lugar no tempo do Jesus histórico, mas só depois do sínodo de Jabne, quando os fariseus decidiram continuar com a religião judaica baseada exclusivamente na Lei, alguns anos depois da destruição de Jerusalém no ano 70. Da parte dos fariseus, foi um ato de coragem e lucidez e um ato fundador que decidiu o judaísmo até aos nossos dias. Foi uma decisão de louvar, mas cheia de ambiguidades por determinarem a expulsão dos judeus messiânicos das suas sinagogas. Os fariseus concluíram que era preciso distinguir as águas entre o judaísmo da Lei de Moisés e o judaísmo dos judeus messiânicos de Jesus. Quando instam o cego a “dar glória a Deus” (v. 24), nada mais querem dizer do que “confessa a verdade da revelação de Deus a Moisés”. Ao Credo dos judeus fariseus, baseado na revelação de Deus a Moisés, opõe-se o Credo dos judeus messiânicos baseado na revelação de Deus a Jesus Cristo-Filho de Deus-enviado do Pai.
A narrativa mistura o singular do cego de nascença com o plural da comunidade joanica: “Soemos que Deus não atende os pecadores…” (v. 31). A afirmação do narrador no v. 34b: “E puseram-no fora”, não tem em vista apenas o cego mas todos os judeo-cristãos messiânicos.
O mais importante, na narrativa, é a fé do cego curado que faz uma caminhada catequética sempre em crescendo:
1) Começa por falar de Jesus como “esse homem, que se chama Jesus” (v. 11).
2) Depois confessa-o como ” um profeta!” (v. 17).
3) Afirma aos judeus, num processo de ironia contra os mesmos, atirando-lhes à cara o que eles afirmavam:”…mas Deus não atende os pecadores…” (v.31).
4) “Se este não viesse de Deus, não teria podido fazer nada” (v. 33).
5) “Tu crês no Filho do Homem?…Eu creio, Senhor!” E prostrou-se diante dele” (vv. 35-38).
Estamos, pois, diante de um “sinal” de Jesus, típico na sua literalidade, que transforma a cura física de um cego de nascença na doutrina cristã das comunidades joanicas. É impossível estabelecer qualquer gradação entre o puramente histórico e o puramente doutrinal. Tudo é história e doutrina. Tudo pertence ao agir de esse homem, que se chama Jesus (v. 11) e do Tu crês no Filho do homem. O processo da catequese e fé cristã das comunidades joanicas é expresso numa narrativa de diálogos e monólogos e não num Credo de sabor puramente confessional.