Anticristo

Bernard McGinn

Em viradas de século e ainda mais de milênios exacerba-se a preocupação com o fim do mundo e o papel que um agente humano maligno desempenhará neste evento. McGinn acompanha a noção de Anticristo de suas origens judaico-cristãs até os dias atuais, alertando sobre a violência potencial que acompanha esta crença, quando puramente literal.

Reconhecendo que a noção de Anticristo foi formulada de uma combinação de mito, história e lenda, McGinn demonstra como o Anticristo serviu a necessidade humana de compreender a persistência do mal no mundo. Com raízes no Judaísmo do Segundo Templo — período de distúrbios religiosos e políticos — a noção de Anticristo desenvolveu-se da crença em forças humanas e angélicas malevolentes.

Seguindo a lenda do Anticristo através do cristianismo primitivo até sua ampla disseminação na Idade Média tardia e século XVI, McGinn explora a evolução da noção através dos séculos que a revestiram de detalhes. Mostra como atormentou a imaginação popular tanto na forma de identificação com indivíduos, como Nero, Napoleão, Hitler e outros, como de grupos, como judeus, hereges, muçulmanos, sempre sendo percebido como fonte de ameaças sociais. O resultado é uma história fascinante da origem, sentido e finalidade da lenda do mal humano.

Michel Henry

A negação a que procede o Anticristo é, portanto, dupla. Por um lado, o Anticristo nega que Jesus seja o Cristo (a afirmação segundo a qual Jesus é o Cristo é a que define o cristianismo; fora de tal afirmação, o cristianismo não existe). Negar que Jesus seja o Cristo é dizer que um homem não tem necessidade de ser um Si vivente e, consequentemente, um Si vivente gerado na Vida e na Ipseidade original desta. Em outros termos, não é preciso experimentar-se a si mesmo para ser algo como um homem. Porque tal afirmação é absurda, a negação que o Anticristo pronuncia é a negação do homem.

Mas o Anticristo procede a uma segunda negação. Negar que Jesus seja o Cristo é negar que haja um Cristo, é negar que haja um Primeiro Si gerado na autogeração da Vida e como condição desta autogeração. Negar que Jesus seja o Cristo não é somente negar o homem, mas também e ao mesmo tempo negar este Primeiro Si na Ipseidade do qual se engendra a Vida absoluta; é negar esta. E negar o Pai e o Filho indistintamente, indissociavelmente. E o que dizem estes versículos, de uma densidade e de uma precisão siderais, da Ia Epístola de João: “Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Eis o Anticristo, o que nega o Pai e o Filho. Todo aquele que nega o Filho também não possui o Pai. O que confessa o Filho também possui o Pai” (2,22-23).

Por que aquele que nega que Jesus seja o Cristo é o mentiroso? É nisso que é preciso pensar até o fim se se quiser compreender uma palavra da essência de nosso mundo e ao mesmo tempo a relação singular que liga o cristianismo a este mundo. Em outros termos: quem é o Anticristo hoje, quem é o mentiroso? Como e [373] porque o Anticristo mente? Estabelecemos, por um lado, que um Si transcendental vivente não advém senão na vinda a si da Vida e na Ipseidade em que esta vinda em si se cumpre; por outro, que nenhum homem é possível se não for um Si, se ele próprio não advir na Ipseidade desta vida. Se se nega, portanto, esta e aquela, que resta do homem? Perguntávamos: que resta do homem fora da Verdade da Vida, na verdade do mundo? Uma aparência vazia, um bronze que soa oco. Eis a mentira: fazer-nos crer que o homem se reduz a algo que não sente nada, e não se sente a si mesmo, ao qual o Apocalipse chama “ídolo”, que não pode “ver, nem ouvir, ou andar” (9,20), a ondas de partículas, a cadeias de ácidos.

Quem é o Anticristo hoje: neste tempo, em nosso mundo? Este próprio mundo. Ou antes, o princípio sobre o qual este mundo vai doravante ser construído e organizado. Pois é preciso observar aqui que a negação do Si transcendental do homem, e assim do próprio homem, não é somente especulativa ou teórica. No plano teórico, é verdade, esta negação leva a consequências imensas. É, como o vimos, o conteúdo de todo saber dirigido ao homem que se encontra não modificado, mas mudado completa e totalmente, uma vez que este conteúdo é interpretado já não como um Si, mas precisamente como uma realidade em si mesma estranha a este Si, à Vida transcendental em que ele nasce. É a uma negação oculta mas não menos radical do ser do Si que procede a afirmação muito honorá-vel segundo a qual Jesus é um homem. Um homem excepcional, até extraordinário, cuja obra, a edificação de uma moral magnífica, implica, em todo caso, respeito. É esta afirmação que, em seu aspecto modesto e em suma benevolente, toma um rumo escandaloso. Dizer que Jesus é um homem, falar pura e simplesmente de “Jesus” é negar que ele seja o Cristo. É, portanto, tratar este homem maravilhoso como mentiroso, se é verdade que Jesus sempre se designou explicitamente como o Messias – se é verdade que a economia do Novo Testamento, o enfrentamento apaixonado com os sacerdotes e, mais ainda, o que Cristo diz de si mesmo e de sua própria natureza [374] repousam unicamente sobre a afirmação incansavelmente repetida – e fundadora do ser cristão – que ele é o Cristo.

Mas é preciso compreender a questão de saber se Jesus não é senão um homem – excepcional, extraordinário, etc. – numa perspectiva muito mais essencial ainda. Na verdade da Vida, tal proposição é simplesmente absurda. Na Verdade da Vida e sob a iluminação metafísica desta Verdade, não há homem, isto é, Si transcendental vivente, senão gerado nesta Vida e no Si original de sua Ipseidade essencial. Assim como longamente o estabelecemos,1 não há homem senão enquanto “Filho de Deus” e “Filho no Filho”. Se pois o Filho não existe, nenhum homem é possível. O Dizer do Anticristo: a afirmação de que Cristo não é senão Jesus e que Jesus não é senão um homem, de que ele não é “Jesus Cristo”, não é somente o grande engano do mentiroso, mas é filosoficamente insustentável. Assim como é impossível conceber um vivente sem pressupor a Vida absoluta nele, assim como é impossível viver enquanto este vivente sem experimentar em si esta vida (“absoluta”: porque nenhum vivente se trouxe a si mesmo a esta vida, mas somente se experimentou nela), assim também nenhum eu e nenhum Si jamais teve o poder de ter-se por si mesmo à sua Ipseidade, nessa condição de ser um Si e um eu. É somente na Vida e na Ipseidade em que ela se tornou a Vida que algo como Sis e eus transcendentais são possíveis. (Michel Henry MHSV)

  1. Cf. supra, cap. 4 e 5.[]