Thomas Merton — Zen e as Aves de Rapina — Morrer para viver em Cristo
Quem já leu São João da Cruz e o que ele diz sobre a “noite” estará inclinado a fazer a mesma pergunta. Se temos de morrer a nós mesmos para viver “em Cristo”, não quer isso dizer que, de qualquer modo, temos de estar “mortos” e “vazios” em relação ao nosso velho ego? Se em tudo devemos ser movidos pela graça do Cristo, não deveríamos, em certo sentido, ter consciência disso como uma ação surgida do vazio, brotada do mistério da pura liberdade que é o “amor divino”, e não como algo produzido em nosso ser exterior, e com ele brotando de nossos desejos e referindo-se ao nosso próprio interesse espiritual?
São João da Cruz compara o homem a uma janela através da qual brilha a luz de Deus. Se a vidraça está limpa, sem mancha nenhuma, estará completamente transparente, não vemos a vidraça, a janela estará “vazia”, aparece apenas a luz. Mas se alguém traz em si as manchas do egoísmo espiritual e a preocupação com seu eu ilusório e exterior, mesmo em relação a “coisas boas”, então a vidraça torna-se bem visível em razão das manchas que traz.
Assim, quando o homem pode libertar-se das manchas e da poeira nela produzidas por sua fixação sobre o que é bom e mau em referência a si mesmo, será transformado em Deus e será “um com Deus”. Nos termos de São João da Cruz:
“Quando a alma dá lugar (que é apartar de si toda névoa e mancha de criatura, tendo a vontade perfeitamente unida à de Deus — porque amar é trabalhar em despojar-se e desnudar-se por Deus de tudo o que não é Ele), logo fica esclarecida e transformada em Deus, e o Senhor comunica-lhe o seu ser sobrenatural de tal maneira que parece ser o próprio Deus e, de fato, é Deus por participação” (São João da Cruz. Subida do Monte Carmelo, Livro II, cap. V, p. 7).
Isto é, como veremos adiante, o que os Padres do deserto denominam “pureza de coração”. Corresponde a uma recuperação da inocência de Adão no paraíso. As muitas estórias dos Padres do deserto, em que se lê o extraordinário domínio que exerciam sobre os animais selvagens, eram originariamente entendidas no sentido de manifestação dessa recuperação da inocência paradisíaca. Um dos primitivos padres, Paulo, o Eremita, declarou: “Se alguém adquire a pureza, tudo a ele se submeterá, como sucedeu a Adão no paraíso, antes da queda” (Citado por Dom Anselmo Stolz, em Théologie de la Mystique, Chevetogne, 1947, p. 31).