ato e potência

Cf. Tomás de Aquino, Metaf., sobretudo I, I. 5, 7, 8, 9.

A teoria da distinção do ser em ato e em potência foi descoberta por Aristóteles que, se não lhe deu todos os desenvolvimentos de que tal teoria era suscetível, estabeleceu-a solidamente sobre suas bases. Tomás de Aquino não terá senão que prosseguir na mesma linha o esfôrço começado para dar-lhe o seu acabamento.

E na Física, para explicar a mudança, que o Estagirita parece ter de início utilizado estas noções. Já no 1. livro, a união matéria-forma exprime, em um caso particular, a distinção ato-potência. Esta distinção é formalmente posta em ação na explicação do movimento, que se vê assim definido: o ato do que é em potência enquanto tal. Enfim, após outras utilizações destas noções, o tratado acaba pela evocação deste primeiro motor, ato puro, em que se resolve finalmente o movimento de todo o universo. Na Metafísica, vemos reaparecer o ato e a potência, ao lado das categorias, ao nível das divisões primeiras do ser. Todo um livro, o é-lhes especialmente consagrado, livro onde se manifesta a preocupação de extrair estas noções do problema particular do movimento, para elevá-las até ao nível do ato imóvel, forma pura. Assim se encontra colocado como rima pedra de toque para a teologia do livro 12, devendo esta reconhecer como caráter próprio à substância primeira a atualidade sem mistura. Se, por outro lado, observarmos que Aristóteles faz um uso contínuo das noções de ato e potência em psicologia, que as adapta à lógica e mesmo às matemáticas, não nos surpreenderemos que alguns tenham desejado fazer destas noções algo como que a pedra angular de todo seu sistema.

Retomemos a teoria em sua origem e tentemos, por nossa conta, extrair nossas duas noções de ato e de potência da análise da mudança. A solução aristotélica deste problema é tradicionalmente apresentada como uma posição intermediária entre as doutrinas extremas do eleatismo e o heracliteísmo Parmênides, não admitindo nenhum meio termo entre o ser e o não-ser, terminava por negar a realidade do devir: o ser, com efeito, não pode vir do ser que já é, pois isto não teria sentido; como também não pode proceder do não-ser que não é nada; não há, portanto, devir, há apenas o ser que é. Heráclito, pelo contrário, reconhecia a realidade da mudança que, para ele, era um dado primitivo, mas sob o fluxo das aparências parecia não reter nenhuma realidade estável. Não haveria, portanto, ser. Mas já não é a própria existência do devir que se vê assim comprometida, pois o que pode ser um devir que não se encaminha rumo ao ser?

Como, pois, conservar ao mesmo tempo o ser e o devir? Reconhecendo que entre o ser no estado acabado, o ser em ato e o puro não-ser, há uma espécie de intermediário, o ser em potência, que já pertence ao real sem estar ainda perfeitamente realizado. Explicar-se-á assim a mudança dizendo-se que é a passagem do ser em potência ao ser em ato. Tomemos um exemplo. Um escultor projeta uma estátua. Escolhe um bloco de mármore que talha até ao acabamento da estátua. O que se passou, metafisicamente falando? Quando a estátua está terminada, diz-se que ela está em ato. Existia ela antes? Evidentemente não existia em ato. Mas não possuía ela nenhuma realidade? Se o afirmamos, o processo da fabricação da estátua torna-se ininteligível, pois esta parece saltar do puro nada. De fato, o escultor apenas pode iniciar a tarefa porque dispunha de uma matéria conveniente, o mármore no caso, de onde, de algum modo, extraiu a estátua. Esta aí não estava ainda em ato, mas podia daí ser extraída, estava em potência. A fabricação foi uma passagem da estátua em potência à estátua em ato. Conclusões análogas surgiram da análise de processos naturais, o da germinação, por exemplo. Tal planta que atingiu seu pleno desenvolvimento não existia evidentemente em ato no grão do qual surgiu: entretanto, aí já estava, mas somente em potência. Generalizando estes resultados, e aplicando-os a todos os casos, poder-se-á dizer que a mudança é a passagem do ser em potência ao ser em ato. A realidade do devir, como a do ser, encontram-se pois salvaguardadas. Tal pode ser, bem esquematicamente figurada, a origem da distinção ato-potência. Precisemos agora cada um destes termos.

Relações entre o ato e a potência.

Ato e potência são correlativos. Entretanto há uma ordem entre estas duas noções: o ato é anterior e explica a potência. Aristóteles procura demonstrá-lo no capítulo 9. Para isto, coloca-se sucessivamente segundo quatro pontos de vista:

Inicialmente o ato é anterior à potência segundo a noção, isto é, a potência não é definida senão pelo ato: por exemplo, a potência de construir pelo ato de construir, etc . . . Na ordem temporal é preciso distinguir. O indivíduo particular está em potência antes de estar em ato: a semente precede o estado adulto. Mas do ponto de vista superior da espécie é preciso estabelecer que o estado perfeito, o ato, deve sempre preceder o estado imperfeito, a potência. Assim, na ordem da geração, deve-se necessariamente partir de um homem feito. Segundo a substância (ou segundo a perfeição) o ato é igualmente primeiro, e a razão principal é que tudo que devém “tende para o seu princípio e para o seu fim, pois o princípio é a causa final e o devir existe em vista do fim. Ora o fim é o ato”. A anterioridade do ato funda-se aqui sobre a anterioridade da causa final, que só pode ser evidentemente o ato. Enfim, Aristóteles acrescenta um último argumento que, na trajetória da sua metafísica, marca um progresso notável. Os seres eternos, diz-nos Aristóteles, e isto é admitido sem discussão, são anteriores aos seres incorruptíveis; ora, estes seres eternos não possuem a potência de não-ser; portanto, não estão em potência; portanto, existem seres em ato que são anteriores a toda potência. Esta demonstração nos orienta já bem nitidamente na direção do ato puro, o qual será explicitamente tratado no livro 12.

– Toda atividade tem seu princípio no ato

Podem-se aproximar da afirmação precedente os adágios aristotélicos que dizem que uma atividade não pode proceder senão de um ser, e este já em ato na linha em que vai agir: Nihil agit nisi secundum quod est actu – Quod est in potentia non reducitur in actum nisi per ens actu. A potência não pode por si mesma, elevar-se ao nível do ato; será preciso sempre que, na ordem da eficiência, intervenha um ser em ato. Isto, convém observar, não vai de encontro com o que havíamos dito precedentemente a propósito da necessidade de uma potência ativa no agente. São dois pontos de vista complementares. Para que um agente possa ter uma eficiência, é preciso, ao mesmo tempo, que esteja em ato no que diz respeito à forma (ou à perfeição) que vai transmitir, e é preciso que esteja em potência (ativa) em relação à operação a produzir. Assim a inteligência, atuada pela especies impressa, está em potência (ativa) em relação ao ato de intelecção.

– Limitação do ato pela potência

Até aqui, seguindo Aristóteles, colocamos a distinção do ato e da potência, definimos cada uma destas noções, distinguimos suas modalidades principais, estabelecemos enfim a prioridade do ato. Tomás de Aquino e um bom número de escolásticos generalizaram a aplicação desta distinção até fazerem dela, de uma certa maneira, o princípio explicativo do conjunto da metafisica. O ser finito seria então essencialmente o que está submetido à composição do ato e da potência; e como o próprio ser infinito não poderá ser alcançado senão a partir do ser finito, a teologia inteira repousará sobre estas noções.

Exprime-se de modo corrente esse valor estrutural fundamental da relação ato e potência nesta tese: o ato não pode ser limitado senão pela potência: actus utpote perfectio, non limitatur nisi per potentiam, quae sit capacitas perfectionis. Eis como se pode demonstrar tal proposição. Por si o ato diz perfeição; por que, então, será limitado? Não pode ser por si mesmo, pois seria contraditório sustentar que a perfeição se limita por si mesma; só pode ser, pois, por algum princípio que dela é distinto, ainda que seja solidário com ela própria, isto é, pela potência. Deve-se, pois, afirmar que em toda composição de ato e de potência, o ato é limitado pela potência, o que acarreta a consequência de que o ato puro será absolutamente ilimitado ou perfeito. Este raciocínio não é inexato, mas Tomás de Aquino, que admite incontestavelmente a conclusão, parece proceder de modo ao mesmo tempo mais realista e mais sintético, referindo-se a uma visão de conjunto do ser participado e do ser imparticipado. Notemos que, de encontro à tese que acabamos de sustentar, scotistas e suarezianos admitem que o ato pode ser limitado por si mesmo. Basta para isso que sua causa eficiente, Deus em última análise, o constitua em tal grau de ser e não em tal outro.

– Multiplicação do ato pela potência

Esta tese pode ser considerada um corolário da precedente. Se temos, com efeito, um ato não limitado por uma potência, este ato é perfeito, mas somente pode ser único, pois não se vê como dois seres igualmente perfeitos poderiam se distinguir um do outro: Nihil autem per se subsistens quod sit ipsum esse poterit esse nisi unum solum. Resulta daí que se uma mesma perfeição se encontra multiplicada, isto só pode ocorrer em virtude de um princípio distinto dela, e que ele mesmo não poderia ser outra coisa senão a potência que a recebeu.

Realidade da distinção ato-potência

Contra as alegações scotistas e suarezianas, segundo as quais a distinção ato-potência não seria mais do que uma “distinção formal” ou uma distinção de razão raciocinada, a Escola tomista afirmou a realidade da distinção entre o ato e a potência, a qual de modo algum parecia constituir uma dificuldade para Tomás de Aquino. Ordinariamente, raciocina-se assim: a potência diz por si mesma capacidade de perfeição, o ato pelo contrário significa na sua natureza uma perfeição determinante; estas duas noções, tendo um conteúdo que se opõe, não podem, pois, com toda evidência, corresponder senão a entidades realmente distintas. O argumento mais autenticamente tomista seria o seguinte: sendo recebido na potência através da causalidade ou da participação, o ato somente pode ser algo realmente distinto desta potência que o recebe. Convém também observar que a distinção real que é manifestada a posteriori pelo fato de que, em certos casos, a potência pode se ver privada do ato que antes a determinava: o sentido da vista por exemplo, da visão efetiva. As dificuldades dos scotistas e dos suarezianos relativas a esta tese parecem vir do fato de entenderem de modo demasiado material a distinção real. Esta, no caso do ato e da potência, não é de modo algum uma distinção de duas coisas que se poderia realizar isoladamente, mas de dois princípios de ser que, ainda que distintos, se determinam reciprocamente.

Conclusão: o ato e a potência como princípios organizadores de toda a metafísica tomista.

Elaborados primitivamente para explicar a realidade do movimento, as noções de ato e de potência viram-se sistematicamente utilizadas para dar conta da estrutura e correlativamente da limitação ou da multiplicidade do ser criado – e inversamente da simplicidade, da infinidade e da unicidade de Deus. Nesta perspectiva, as grandes distinções de matéria e de forma, de substância e dos acidentes e mesmo a que nos resta estudar, de essência e existência, aparecem como várias notáveis aplicações da distinção fundamental da potência e do ato, que se torna como que “a alma” de toda metafísica tomista. Estas visões sintéticas não são, sem dúvida, inexatas, e pode ser extremamente frutuoso reportar-se a elas, com a condição, todavia, de que a originalidade própria de cada uma destas distinções e a problemática que se encontra em seu princípio não seja esquecida e que não termine na ilusão de uma espécie de dedução a priori de todas as grandes teorias metafísicas a partir do esquema, colocado uma vez por todas, do ato e da potência. Feita esta observação, nada podemos fazer de melhor, para resumir essa visão de síntese, do que retomar as próprias fórmulas das duas primeiras teses tomistas propostas pela Congregação dos Estudos (27 de julho de 1914).

I. A potência e o ato dividem o ser de tal maneira que tudo o que é, ou é ato puro, ou é composto de potência e de ato como de princípios primeiros e intrínsecos.

II. O ato, como perfeição, somente é limitado por uma potência que seja capacidade de perfeição. Donde se segue que na ordem em que o ato é puro, este não pode existir senão único e ilimitado; e onde, pelo contrário, ele é finito e múltiplo permanece em um verdadeiro estado de limitação com a potência.

Nota: – Sobre este valor sintético da teoria do ato e da potência em metafísica, poder-se-á consultar: Del Prado. De veritati fundamentali philosophiae christianae, e seu resumo francês na Révue Thomiste, março de 1910; Garrigou-Lagrange. Applicationes tum physicae, tum metaphysicae doctrinae de actu et potentia secundum Sanct. Thomam, em Acta primi congressus thomistici internationalis; Robert. Actus non limitatur nisi per potentiam em Rev. Philo. de Louvain, 1949. (Gardeil)