Palavra de Vida

Como a vida se revela? No sofrer e no fruir de seu viver, na fenomenalidade de seu pathos. Que revela em sua fenomenalidade patética? A si mesma. É isso o que estabeleceram todas as nossas análises. A vida revela de tal modo, que o que ela não revela senão a si mesma e nada mais. Ela se afeta de tal modo, que o conteúdo de sua afecção é ela mesma e nada mais. A diferença da palavra do mundo, que desvia de si mesma e fala de outra coisa, de outra coisa além dela – de outra coisa que, nesta palavra, se encontra lançada fora de si, desviada, deportada, despojada de sua própria realidade, esvaziada de sua substância, reduzida a uma imagem, a uma aparência exterior, a um conteúdo sem conteúdo, ao mesmo tempo opaco e vazio –, a palavra da Vida revela a Vida, dá a Vida. A Palavra de Vida é a autodoação da vida, sua autorrevelação na fruição de si. O Logos de Vida, a Palavra de Deus é a Vida fenomenológica absoluta captada no processo hiperpoderoso de sua autogeração enquanto sua autorrevelação.


Com a intuição de uma Palavra de Vida, são esses pressupostos ingênuos e esses paradoxos exteriores que o cristianismo faz voar em pedaços. Ao mesmo tempo, é o conjunto de relações que se organiza em torno da palavra, a relação da palavra com o que ela diz, com quem a ouve, é a natureza mesma do ouvir que se encontram profundamente alterados. E antes de tudo é a própria obra da palavra, sua operação que muda de todo. A Palavra de Vida não sustenta nenhuma referência às coisas deste mundo nem a este mesmo mundo. Ela não se dedica a criá-las – tarefa que apalavra humana não leva a efeito verdadeiramente a não ser na magia e nem sequer a desvendá-las: mundo e coisas do mundo são simplesmente estranhos ao campo de sua ação. Aliás, a Palavra de Vida não age no sentido que se dá habitualmente a essa palavra e que nós denunciamos – no sentido de uma criação de objetos, de sua pro-dução, e antes de tudo no sentido de uma objetivação. A operação da Palavra de Vida não é uma “ação” desse gênero, mas uma geração. Em uma geração, o que é gerado permanece interior ao poder que o gera, e isso porque o poder que gera permanece interior ao que ele gera. Ora, a Palavra de Vida não é somente uma geração, mas uma autogeração. Ela é a autogeração da vida enquanto sua autorrevelação. É o poder de se autorrevelar autogerando-se o que exprime a noção de Palavra, é o poder fenomenológico da Vida absoluta que ela designa. A Vida absoluta é uma palavra porque se autogera de tal modo que se autorrevela nesta autogeração – mais profundamente porque se [312] autogera autorrevelando-se. É por essa razão que autogerando-se a Vida absoluta engendra em si um Logos, precisamente o da Vida, que lhe é consubstanciai. A Vida fala no princípio, nesse Logos que é sua autogeração como autorrevelação – como Palavra.

Porque a Vida se autogera autorrevelando-se na Palavra de Vida, esta Palavra de Vida não fala somente, na autogeração da Vida, ali onde ela é consubstanciai ao Pai, onde ela é seu próprio Logos. Em todas as partes onde a autogeração da Vida está implicada, e assim sua autorrevelação e assim seu Logos, ali também fala a Palavra de Vida. A Palavra de Vida não fala somente no princípio: fala em todo vivente. O que diz a Palavra de Vida é, em todo vivente, seu viver. É desse modo que ela o gera, dando-lhe a vida, isto é, concedendo-lhe autorrevelar-se em sua própria autorrevelação – na autorrevelação consubstanciai à sua autogeração. Assim, cada vivente não vive senão da Palavra de Vida na medida em que vive. O que a Palavra de Vida lhe diz é sua própria vida. E, porque esta Palavra de Vida é amor – a autorrevelação da Vida absoluta no fruir e no amor de si –, o que ela lhe diz é seu próprio amor. Assim se encontra definida com um rigor até então impensado a constelação das relações que se organizam em torna da Palavra, e isso de tal modo que, captadas a partir da Palavra de Vida e já não a partir da do mundo, todas essas relações se encontram, com efeito, profundamente alteradas.

(Michel Henry, MHSV)