GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
O Livrinho da Eterna Sabedoria é a obra prima de Suso e, como disse Denifle, “o mais belo livro da mística alemã”. É um diálogo entre a Sabedoria eterna (Cristo) e seu servo (o próprio Suso), não agora dirigido a propor problemas e a resolvê-los, nem a discutir as aporias de opiniões do pensamento racional para chegar a uma conclusão metafísica ou a uma proposição teológica, mas para instituir um grandioso e temo colóquio entre a alma e Cristo. Não obstante a exaltação do sofrimento, o Livrinho continua sendo sempre o diálogo “do doce amor”. A meta não está longe, mas já presente; o amor não é sonhado como objeto de um desejo inquieto, senão como vínculo que une solidamente a dos espíritos. Cristo narra a seu servo as diversas e muito dolorosas etapas de sua Paixão e de sua crucificação e se detém a descrever, com abundância de detalhes, os momentos mais angustiosos de seu destino humano. A dor de Cristo e o amor da alma são os dois indissolúveis motivos predominantes do afetuoso colóquio: a dor de Cristo é a expressão humana de seu infinito amor divino; o amor da alma não pode ser amor divino senão enfrentando todas as angústias da dor de Cristo homem. Amor e dor são os momentos dialéticos da vida espiritual e não podem separar-se, como não pode separar-se, em Cristo, o divino e o humano. O Divino cumpre seu ciclo perfeito encarnando-se no humano e assumindo, portanto, todas as misérias, as dores e a morte, que pertencem à humanidade. O humano não pode elevar-se ao Divino se, através dos sofrimentos, não chega ao amor de todas as criaturas em Deus. Mas assim como em Cristo as duas naturezas, a humana e a divina, se condicionam reciprocamente em uma unidade que não conhece momentos sucessivos, tampouco na alma a dor é possível nem tem sentido senão em um coração amante: a voluptas dolendi, que está na base do que Lichtenberger chamou impropriamente a religião do sofrimento, não é, portanto, como nos poetas pessimistas, a expressão de uma alma que se compraz em torturar-se em uma solidão sem paz, mas que está sustentada por um amor profundo que padece todos os sofrimentos em nome de uma unidade interior plena e absoluta.
Suso não desenvolve sua teoria do amor sofredor com uma especulação sutil e refinada que recorre a princípios e abstrações metafísicas e teológicas, senão com os meios de seu sentimento e de sua fantasia que anseia o concreto, as belas formas e as efusões humanas. O amor não se concebe como uma inefável unidade na qual toda a distinção e dualidade são impossíveis, nem Cristo é só símbolo visível e histórico de um Valor universal e eterno. Cristo ergue-se diante da alma como o amado diante do amante e seu amor, ainda que,como nos afetos humanos,seja naturalmente aspiração para a unificação, não dissolve de maneira alguma sua distinção substancial senão que mantém em seu afetuoso colóquio um sabor de humanidade e de humana poesia. O amor da alma se enriquece assim com todas as doçuras do sentimento que sonha com o rosto do amado em todos os aspectos de sua beleza e Cristo permanece diante da alma com sua luminosa humanidade como sagrado objeto de adoração. Nele a Divindade adquire uma personalidade que vive e fala, à qual é possível confiar os impulsos mais secretos do coração. A mística de Suso volta a ser cristocêntrica porque encontrou nele um temperamento de poeta. Se o panteísmo eckhartiano, com seu desdenhoso esquecimento de toda a forma e de todo o limite, com a exaltação da Divindade imanente invisível “que lembra a monotonia do mar solitário”, pode comparar-se a uma música leve e arrebatadora que encanta e adormece, o misticismo de Suso deve comparar-se, ao contrário, a um desses quadros de pintores flamengos nos quais, aos pés de Cristo crucificado, sobre a grama suave e as flores multicores, há um santo ajoelhado com as mãos unidas e os olhos extasiados, cheios de amor, enquanto no fundo brilha, num azul imaculado, a primavera e mil aspectos da vida falam de sua beleza. A alma apaixonada de Suso se abre com entusiasmo a todas as vozes do mundo e a todos os dons da vida: seu amor à Sabedoria eterna e invisível se derrama, como um raio de luz sobre todas as coisas do tempo e do espaço e as ilumina milagrosamente. O tom fundamental de suas paisagens espirituais é a cor rosada, como é o amarelo nas alucinadas visões de Van Gogh. Cor-de-rosa são os membros do martirizado corpo de Cristo; cor-de-rosa as auroras e os ocasos de suas jornadas fervorosas e extasiadas; de rosa Cristo promete colorir com seu sangue o corpo de seu servo fiel; a dor cobre a alma de cor-de-rosa. E maio é o mês de sua alma, o mês em que se abrem com as flores os afetos dos corações juvenis e, no seu, a devoção apaixonada pela mais bela das jovens, por Maria. No Livrinho da eterna Sabedoria se repetem, em lugar dos termos da especulação abstrata, os nomes das flores prediletas, as rosas vermelhas e os cândidos lírios, os cravos e as violetas e o doce orvalho de maio; o próprio céu desce sobre a terra e nos ramos verdes e florescidos e nas harmonias da primavera encontra sua expressão adequada. A natureza perdeu toda a sua amargura e já não conhece a morte, porque um coração divinamente amoroso a acolheu em si. Como no Paraíso do Beato Angélico ou nas pinturas de Hubert e de Jan van Eyck, a vida espiritual realizou, com a beleza das formas visíveis, a mais harmônica das conciliações. Também nesta obra, como em algumas cartas, Suso se apraz em inserir, entre sua prosa colorida, algumas estrofes breves, como assinalando o momento mais supremo de sua emoção místico-poética.
Por sua refinada cultura estético-humanista, Suso, mais que qualquer outro místico alemão, está muito perto dos místicos italianos do século XIV; e ele também, como estes escritores, sintetiza em si com admirável equilíbrio todos os elementos mais díspares de uma civilização e de uma cultura.
Mas se na luxuriante floração de seu exuberante sentimento e de sua fantasia e entre a farta colheita de imagens, de símbolos e de visões já não tem razão de ser a elevada especulação do Mestre que havia inspirado o Livrinho da verdade isto não significa que a alma de Suso se disperse em um vago e mórbido fantasiar. Não só vivem nele intensamente os motivos ético-místicos fundamentais da ensinança eckhartiana, reelaborados e purificados através de seu temperamento, senão que também está vigilante nele a observação externa capaz de ver a decadência da vida monástica e inspirar fortes palavras de condenação. Os pensamentos mais belos saídos de sua pena se referem naturalmente aos dois motivos predominantes de seu Livrinho: o amor e a dor. “Enquanto o amor permanece perto do amor, o amor não sabe quão querido é o amor; mas quando o amor se afasta do amor, somente o amor se dá conta de quão caro lhe era o amor; “é melhor aproximar-se de Deus por amor que afastar-se dele por temor”; “A dor é um bem oculto… que protege das quedas dolorosas, faz com que o homem se conheça a si mesmo e seja indulgente para com seu próximo. A dor mantém a alma na humildade, ensina a paciência, outorga a coroa da eterna beatitude. Nas diferentes ensinanças ético-religiosas que sob a forma de aforismos e de sentenças Suso inclui especialmente na “Vida” e que anunciam a aforística religiosa de um Amado Nervo ou de um Inayat Khan, se repete sempre um pensamento rigoroso e definido dentro de uma forma muito límpida.
Também Suso, como todos os místicos da escola eckhartiana, tira o valor às obras e parece antecipar — mais que Tauler e o francfortês — a doutrina de Lutero, quando descreve o modo de atingir a posse suprema. É necessário — diz a Eterna Sabedoria — que o homem meça a magnitude e a gravidade de seus pecados; não leve em conta as obras que realiza para a própria expiação; considere a seguir a incomensurável magnitude da expiação de Cristo, já que a menor gota de seu precioso sangue seria suficiente para expiar os pecados de mil mundos; finalmente, submerja humildemente a pequenez de sua expiação na imensidade da de Cristo e junte-as. Sem dúvida, um mérito desta mística cristocêntrica é o fato de que Lutero, mesmo com seu ódio pelo dogmatismo, haja permanecido fiel a Cristo e o tenha convertido no centro de sua doutrina de salvação.
O Livrinho da eterna Sabedoria foi considerado durante muito tempo como modelo e original do Horologium Sapientiae, que seria, portanto, a tradução latina do Livrinho e sua refundição (Biehlmeyer, Denifle). Segundo esta opinião, o Livrinho da eterna Sabedoria teria sido publicado nos primeiros meses de 1328. Porém se nos atermos às recentes investigações de Gröber, devemos datar a composição do Horologium a partir do ano de 1334 e atribuir o Livrinho da eterna Sabedoria, com muita probabilidade, a princípios de 1348, poucos meses antes de que seu autor fosse trasladado para Ulm.