Hans Jonas — Religião Gnóstica
A “MISTURA”, A “DISPERSÃO”, O “UNO” E O “MÚLTIPLO”
*A ideia de duas entidades originais e opostas, da concepção iraniana, leva à metáfora da “mistura” para a origem e composição deste mundo. A mistura é, no entanto, algo desigual, e o termo essencialmente denota a tragédia das porções de Luz separadas de seu corpo principal e imersas no elemento estrangeiro.
*A mistura é expressa em citações mandeanas em termos dos cinco elementos básicos do esquema maniqueísta que subjaz alguns escritos mandeanos.
*Até o mensageiro está submetido ao destino da mistura: “Então o fogo vivente nele se tornou modificado… Seu esplendor foi afetado e atenuado … Veja como o esplendor do homem estrangeiro é diminuído!”
*No maniqueísmo a doutrina da mistura com sua contrapartida na não-mistura, forma a base de todo o sistema cosmológico e soteriológico.
*Conectada à ideia de mistura está a de “dispersão”. Se porções da Luz ou da primeira Vida se separaram dela e se misturaram com a escuridão, então a unidade original se rompeu e se desenvolveu a pluralidade: os estilhaços são as centelhas dispersas através da criação. A própria criação de Eva e o esquema de reprodução iniciado por isto subsidiam ainda mais a indefinida dispersão das partículas de luz que os poderes da escuridão conseguiram engolfar e por este meio conseguiram reter seguramente. Consequentemente, a salvação envolve um processo de reunião e de recoleta daquilo que foi disperso, e a salvação objetiva a restauração da unidade original.
*Esta auto-coleta é vista como procedendo pari passu com o progresso do “conhecimento” e sua consecução como uma condição para a liberação última do mundo: “Aquele que alcança esta gnose e reúne ele mesmo deste cosmo… não é mais detido aqui mas eleva-se acima do Arcontes”. Proclamando este feito a alma ascendente responde ao desafio dos guardiões celestiais: “Eu cheguei a me conhecer a mim mesmo e reunir a mim mesmo de toda parte…”
*O conceito de união e unificação, como o de pluralidade, diversidade e dispersão, tem um aspecto interior assim como metafísico: aplica-se ao indivíduo assim como ao ser universal. É uma marca das formas mais elevadas e filosóficas de gnose que estes dois aspectos, complementares desde o início, vêm cada vez mais a se coincidir; e que a crescente realização do aspecto interno purifica o metafísico dos significados mitológicos mais grosseiros que tinha. Para os valentinianos, cujo simbolismo espiritualizado marca um passo importante no caminho para de-mitologização, a “unificação” é a própria definição daquilo que o “conhecimento do Pai” deve alcançar para “cada um”:
“É por meio da Unidade que cada um deve receber a si mesmo de volta. Através do conhecimento deve purificar-se da diversidade com vistas à Unidade, pela absorção da Matéria dentro de si mesmo como uma chama, Escuridão pela Luz, e Morte pela Vida.” (Evangelho da Verdade)
*Tanto os aspectos universal (metafísico) e individual (místico) da ideia de unidade e seus opostos se tornaram temas recursivos na especulação assim que se moviam além da mitologia. Orígenes, cuja proximidade do pensamento gnóstico é obvia em seu sistema (anatematizado pela Igreja) via todo o movimento da realidade nas categorias da perda e recuperação da Unidade metafísica. Mas foi Plotino que em sua especulação traçou as conclusões místicas da metafísica da “unidade versus a Pluralidade”. A dispersão e a reunião, categorias ontológicas da realidade total, são ao mesmo tempo padrões-de-ação da experiência potencial de cada alma, a unificação interior é a união com o Uno. Assim emerge o esquema neoplatônico da ascensão interior do Múltiplo ao Uno que é ética nos primeiros degraus da escada, então teorética, e mística nos estágios culminantes.