Mircea Eliade

História das Crenças e das Ideias Religiosas

Uma das imagens preferidas dos autores gnósticos é a do sono assimilado à ignorância e à morte. Sustentam os gnósticos que os homens não apenas dormem, como gostam de dormir. “Por que motivo apreciareis sempre o sono e tropeçareis com aqueles que tropeçam?”, interroga o Ginzâss. “Porque quem tem ouvidos desperta do pesado sono”, lê-se no Apocalipse de João. Como veremos, o mesmo motivo é encontrado no maniqueísmo. Tais fórmulas, porém, não são monopólio dos autores gnósticos. A Epístola aos Efésios (5: 14) contém esta citação anônima: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá”. Sendo o Sono (Hypnos) o irmão gêmeo de Thánatos (Morte), não só na Grécia como na Índia e no gnosticismo, a ação de “despertar” tinha um significado “soteriológico” (no sentido lato do termo: Sócrates “desperta” os seus interlocutores, às vezes contra a própria vontade destes).

Trata-se de um simbolismo arcaico e universalmente difundido. A vitória conquistada sobre o sono e a vigília prolongada constituem uma prova iniciatória bastante típica. Em certas tribos australianas, os neófitos que estão sendo iniciados não devem dormir durante três dias, ou ainda ficam proibidos de se deitar antes da aurora85. Recorde-se o leitor da prova de iniciação em que o famoso herói Gilgamesh fracassa redondamente: não consegue permanecer acordado e perde a oportunidade de tornar-se imortal. Num mito norte-americano de tipo Orfeu e Eurídice, um homem logra descer aos Infernos onde reencontra a esposa que acabava de morrer. O Senhor do Inferno promete-lhe que poderá levar a mulher de volta à Terra se for capaz de ficar de vigília a noite inteira. Mas por duas vezes, e mesmo depois de ter dormido durante o dia para não se sentir cansado, o homem não consegue vigiar até a aurora. Vê-se, pois, que “não dormir” é não apenas triunfai sobre o cansaço físico, mas sobretudo dar prova de força espiritual. Permanecer “acordado”, estar plenamente consciente, significa: estar presente no mundo do espírito. Jesus ordenava insistentemente aos seus discípulos que vigiassem (cf., por exemplo, Mateus, 24: 42). E a Noite de Getsêmani tornou-se particularmente trágica pela incapacidade dos discípulos de vigiar com Jesus.

Toshihiko Izutsu

Sonho Realidade

El «mundo de las Imágenes» (‘alam al-mital) es, desde un punto de vista ontológico, un terreno intermedio de contacto entre el mundo puramente sensible y el mundo puramente espiritual, o inmaterial. Es, como lo define Affifi, «un mundo realmente existente en que se hallan las formas de las cosas de un modo que oscila entre la “delicadeza” y la “tosquedad”, o sea entre la pura espiritualidad y la pura materialidad».

Todas las cosas que existen en este nivel del Ser poseen, por una parte, algo en común con las que existen en el mundo sensible, y se parecen, por otra parte, a aquéllas, abstractas e ininteligibles, que existen en el mundo del intelecto puro. Son cosas especiales, medio sensibles y medio inteligibles. Son sensibles, pero de una sensibilidad extremadamente sutil y enrarecida. También son inteligibles, pero no de una inteligibilidad pura como la de las Ideas platónicas.

Lo que llamamos comúnmente imaginación no es sino este mundo reflejado en la consciencia humana, no en su propia forma, sino de manera tangencial, vaga y completamente deformada. Las imágenes obtenidas de este modo carecen, por naturaleza, de base ontológica y han de ser debidamente desechadas como alucinaciones.

En ocasiones, empero, el «mundo de las Imágenes» aparece como es realmente, sin deformación alguna, incluso en la consciencia de un hombre ordinario. El caso más notable se produce en el sueño verídico. El «mundo de las Imágenes» existe eternamente y actúa en todo momento en la consciencia humana. Pero el hombre, por su parte, no suele ser consciente de ello cuando está despierto, porque su mente, en ese estado, se encuentra obstaculizada y distraída por las fuerzas materiales del mundo exterior. Sólo cuando está dormido, con las facultades físicas de su mente en suspenso, puede la facultad de la imaginación operar de manera adecuada. Se producen entonces los sueños verídicos.

Hans Jonas

A RELIGIÃO GNÓSTICA

Torpor, Sono, Intoxicação
As categorias emocionais da última seção pode-se dizer que refletem as experiências gerais humanas que se manifestam e se expressam em qualquer parte, embora raramente de modo tão enfático. Outra série de metáforas referindo-se à condição humana no mundo é mais unicamente gnóstica e recorre com grande regularidade através de todo domínio de expressões gnósticas, independente de fronteiras linguísticas. Enquanto a existência terrena é por um lado, como vimos, caracterizada pelos sentimentos de abandono, pavor, nostalgia, é por outro lado descrita também como “entorpecida”, “sonolenta”, “embriagada”, e “esquecida”: quer dizer, assumiu (se excetuamos a embriaguez) todas as características que um tempo anterior aplicou ao estado do morto no mundo de baixo. De fato, vemos que no pensamento gnóstico o mundo toma o lugar do submundo tradicional e já é ele mesmo o reino dos mortos, isto é, daqueles que devem ser soerguidos à vida de novo. Com respeito a isto esta série de metáforas contradiz as anteriores: inconsciência exclui medo. Isto não é ignorado na narrativa detalhada dos mitos: é somente o despertar do estado de inconsciência (“ignorância”), efetuado de fora, que revela ao homem sua situação, até então dele oculta, e causa um surgimento do pavor e do desespero; ainda assim de algum modo estes já deviam estar em operação no estado precedente de ignorância, na medida que a vida demonstra uma tendência a assegurar-se e a resistir ao despertar.

Como o estado de inconsciência adveio, e em que termos concretos é descrito? A “projeção” como tal daria conta do torpor da alma caída; mas o meio estranho ele mesmo, o mundo como uma entidade demoníaca, tem grande contribuição para tal.

A inconsciência é uma verdadeira infecção pelo veneno da escuridão. Lidamos aqui como em todo grupo de metáforas da sonolência, não com um detalhe mitológico, um mero episódio em uma narrativa, mas com uma característica fundamental da existência no mundo a qual todo o empreendimento redentor da deidade extramundana está relacionado. O “mundo” por sua parte faz esforços elaborados para criar e manter este estado em suas vítimas e contrapor-se a operação de despertar: seu poder, mesmo sua existência, está em risco.

Dentre as mais constantes e mais amplas imagens em uso pelos gnósticos, o sono destaca-se. A Alma dorme na Matéria. Adão, o “cabeça” da raça e ao mesmo tempo símbolo da humanidade, jaz em profundo sono, segundo uma espécie muito distinta da do Adão bíblico: os homens em geral estão “adormecidos” no mundo. A metáfora expressa o total abandono do homem ao mundo. Algumas figuras de discurso sublinham este aspecto espiritual e moral. Os homens não apenas dormem mas “amam” o sono; abandonam-se a si mesmos mesmos no sono assim como na embriaguez. Mesmo se dando conta que o sono é o maior perigo à existência no mundo não é suficiente para se manter desperto, mas ativa a oração: “De acordo com o que tu, grande Vida, me disseste, uma voz viria diariamente a mim para despertar-me, para que não caia. Se me chamaste, os mundos malignos não me aprisionariam e não cairia presa dos Eões” (Prece dos Mandeanos).

A metáfora do sono pode igualmente servir para descontar as sensações de “vida aqui” como meras ilusões e sonhos, embora pesadelos, que estamos sem poder de controlar; e aí os símiles de “sono” juntam-se aos de pavor e temor.

Na medida que a mensagem gnóstica concebe-se a si mesma como a contraposição ao desígnio do mundo, assim como a chamada tenciona romper o encantamento, a metáfora do sono, ou seus equivalentes, são um componente constante dos apelos gnósticos ao homem, os quais se apresentam eles mesmos como apelos de “despertar”. Quando falarmos da “chamada” lidaremos mais com estas metáforas.

Julius Evola

TRADIÇÃO HERMÉTICA

O «sono» é uma expressão esotérica tradicionalmente usada para designar a consciência gravada na condição do corpo animal, em antítese com o símbolo do Acordado ou Desperto do Iniciado, com a obra de destruição do sono — nidrâ-bhanga — dos textos hindus, com a «natureza intelectual privada de sono ou insone — he physis agrypnos» — de que fala Plotino. Como o avidya budista, este «sono» simbólico pode considerar-se equivalente também ao «esquecimento» — lethe — dos gregos. Macróbio transmite a tradição da divisão da «matéria» — hyle — duas partes; uma, como ambrósia, é a substância da vida dos deuses; a outra, bebida das almas, constitui a água do rio Lete, quer dizer, a água do esquecimento, e esta tradição introduz-nos afinal no sentido da doutrina dos dois septenários.

Não se trata de duas ordens realmente distintas, mas sim de uma mesma realidade com duas formas diferentes de ser: o que conduz de uma forma à outra seria o acontecimento referido no Corpus Hermeticum, já que o seu epílogo seria o «estado de sono», o «esquecimento», a perda da consciência espiritual, a alteração do princípio mais profundo. Num discípulo de Boehme — Georg Gichtel— este ensinamento é explícito. Fala de um fogo (ou seja, de uma Potência-Eu) que, separada da Luz (a vitalidade difusa), se torna ânsia: com o seu ardor ele devora toda a «umidade oleosa», razão pela qual a luz se apaga e se produz um precipitado negro (é a cor de Saturno, cuja ponta escura, numa gravura de Basílio Valentino, está dirigida para o princípio Corpus). É a «corrupção do corpo luminoso paradisíaco» que num sono (Gichtel utiliza exatamente esta expressão) é substituído pelo corpo negro terrestre, «sede de um apetite insaciável, de doença e morte». E Gichtel continua: morta interiormente, a Alma (aquele Fogo originário) torna-se no «inferno» onde age a corrupção eterna. «E então aparecem sete figuras, filhas do Dragão ígneo, Espírito-deste-mundo, que são os selos que impedem aos não regenerados receberem o Fogo Divino». Sabe-se, por outro lado, que mesmo nas fábulas e contos populares se introduziram figurações de dragões de sete cabeças, guardando «cavernas» (isto é, os «acessos» ao interior da «Terra» — aos estados profundos encerrados no corpóreo) ou «tesouros» (Ouro ou pedras preciosas — e já no gnosticismo, como depois na alquimia, as gemas significavam frequentemente os «poderes»). Segundo o mitraísmo, a Alma para se libertar deve atravessar sete esferas, assinaladas por sete portas, cada uma das quais está guardada por um anjo do Deus das Luzes: equivalência dos «selos» que impediriam a realização espiritual do septenário superior (os sete «céus»).

Por outro lado, a cada porta corresponde um grau da iniciação mitraísta. o que demonstra não se tratar de abstrações teológicas, mas sim de alusões a formas transcendentes da consciência, bloqueadas pela potência que atua naqueles que foram vencidos pelo simbólico sono.