Manuel João Ramos — Ensaios de Mitologia Cristã
Função do Hino da Pérola nos Atos de Tomé
Se for aceite como plausível a concepção de que o próprio Hino se constitui como uma mensagem de origem celeste enviada ao apóstolo, então torna-se clara a sua função no (con)texto dos Atos: a de descrever, em espelho, a missão de Tomé. É, por isso, coerente propor uma identificação posicionai entre a figura de Tomé e a do «filho do rei», sobretudo fazendo apelo à problemática mencionada atrás envolvendo a correlação seguinte:
Aparência : Imagem (verdadeira) :: Corpo : Espírito
O Hino entreabre assim as portas a uma interpretação semanticamente mais rica dos Atos relembrando outro nível de leitura do texto. A inversão isolada constitui, ali, uma exemplificação de carácter alegórico do problema enunciado atrás sobre a necessidade de distinção entre «aparência carnal» e «imagem espiritual», que afeta negativamente não apenas o corpo mas toda a matéria. É portanto como metáfora do esplendor e riqueza da natureza espiritual que a caraterização de indumentária oriental (celeste) do herói deve ser entendida. Esta formulação de carácter retórico (o que é materialmente rico é espiritualmente pobre e vice-versa) é explicitada pelo eixo das relações espaciais: do ponto de vista do autor (terrestre e humano) dos Atos, Tomé encontra-se a oriente, na Índia; mas do ponto de vista do autor suposto (celeste e espiritual) do Hino, a Índia encontra-se, pelo contrário, a ocidente do «reino oriental». A entoação do Hino na prisão indiana, ao fazer equivaler posicionalmente o Egito e a Índia, torna manifesto o destino comum dos dois personagens, mas denunciando duas perspectivas exatamente simétricas na definição dos limites (oriental e ocidental) dos seus percursos: na prisão indiana, a aparência corporal de Tomé encontra-se no ponto extremo da sua viagem material para oriente, e é como que intersectada (trespassada) por uma mensagem divina que denuncia a presença do seu verdadeiro Eu, «estrangeiro», em viagem espiritual para ocidente.
O cumprimento da missão apostólica tem, portanto, um triplo valor disjuntivo: cosmológico, sociológico e ontológico. A vitória sobre a «serpente» é traduzida pela imposição do modelo teológico cristão no espaço indiano, e a recuperação da «pérola» exprime-se pela desanexação parcial de um soberano humano ao domínio do Diabo, o «Príncipe deste mundo», segundo a fórmula evangélica canônica1 — ponto de interesse para a compreensão da mensagem político-religiosa da Carta do Preste João: a possibilidade de existência, no espaço indiano, de um tipo de soberania humana que não ponha em causa a elaboração do modelo cristão de soberania divina centrada na conjunção pai-filho, e equacione satisfatoriamente o problema levantado nos evangelhos: «Ninguém pode servir a dois reis»2. Em termos sociológicos, a disjunção entre um representante da «serpente», o rei pagão Mazdaï, e Vizan, o seu herdeiro, configura a possibilidade de estabelecimento de um novo projeto de soberania indiana: Vizan, tornado «irmão» espiritual de Tomé, e através dele, de Jesus, herdeiro do trono celeste, não deixa por isso de se constituir herdeiro de Mazdaï, cristianizado depois da morte de Tomé. Finalmente, a missão constitui-se como via ontológica para a separação entre a «aparência» física e a «imagem» verdadeira, e para a libertação espiritual (acesso à imagem interior, espelho da substância divina) de Tomé: através do martírio — no ponto mais oriental e mais alto possível — o corpo sem vida retorna ao ocidente, e a alma ascende, no seu invólucro espiritual, para junto da divindade reaparecendo depois brevemente perante Vizan e Sifur (§.169).
A inversão referida acima, que se encontra subjacente à mensagem teológica do Hino, ilustra eloquentemente a ambiguidade fundamental de uma caraterização literária da ideia de «riqueza espiritual», de acordo com a tradição descritiva dos textos bíblicos: a enunciação da riqueza espiritual e a definição de um modelo de soberania celeste dependem de uma adjetivação e substantivização que se reportam à riqueza material e ctônica (ouro, prata, pedras preciosas), que caraterizam e decoram as indumentárias, os tronos, os palácios dos soberanos humanos orientais. Este ponto, aparentemente paradoxal, deve ser retido para uma adequada consideração dos elementos descritivos do reino, palácio e indumentária do Preste João, na Carta.
É relevante verificar portanto que os mesmos elementos descritores do modelo de soberania indiana de Mazdaï e de Gundafor, posto em causa pela missão de Tomé, servem, no Hino, à caraterização do reino oriental de onde o herói é originário. Uma leitura dialéctica do conjunto permite assim sugerir que o Hino é interpretável como uma descrição da missão de Tomé, em espelho — isto é, vista do Paraíso: é o verdadeiro Eu (espiritual) que entoa o hino, ou que faz que ele seja entoado. É importante sublinhar a importância deste recurso estilístico, dado que ele poderá explicar, em parte, o tom da Carta do Preste João. Esta interpretação é reforçada pelo fato de, através de uma dupla simetria da figura de Tomé, ser possível estabelecer uma equivalência formal entre as constelações familiares dos dois textos: Tomé, que é, como o herói do Hino, declarado irmão espiritual de Jesus, o herdeiro de um reino oriental divino, torna-se também, no final do relato, «irmão» espiritual de Vizan, filho de um rei humano oriental, pela nomeação deste para o cargo de diácono da igreja indiana.
A comparação entre o Hino e os Atos reforça a ideia de que não deve ser subestimado o princípio de inversão-reflexão que afeta as categorias simbólicas expressas, consoante se referem a um ou outro dos mundos propostos (o mundo divino–espiritual, e o mundo humano-material), tendencialmente concebidos como simétricos. Através dele, torna-se possível, por um lado, incorporar, num mundo material corrompido e dominado pelo Diabo, elementos espirituais, apesar de só «aparentemente» visíveis, e por outro, imaginar um mundo espiritual paralelo através de qualificações provenientes do mundo material, mas afetadas de uma valorização oposta àquela que recebem aí.
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