Pelágio

Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”

O pelagianismo era uma heresia do Império ocidental. Em momento algum dava sinais de ser uma escola ou seita separada, e tampouco houve o perigo de formação de uma Igreja separada. Num certo sentido, não havia sequer questão alguma a respeito das ideias em disputa serem ou não serem aquilo que Cristo poderia ter ensinado, ou se eram ou não o que tinha sido revelado. Os defensores da “ortodoxia” só temiam o que poderia acontecer, no caso de certas ideias “heterodoxas” serem aceitas de maneira generalizada e teologicamente desenvolvidas. E até possível que, se isso tivesse acontecido, as doutrinas cristãs teriam passado por mudanças. Por mais estranho que possa parecer, tudo indica que a controvérsia a respeito do pelagianismo foi mais um contraste entre duas atitudes fundamentais que um conflito entre crenças ou teorias teológicas. Sua importância reside na profundidade de suas indagações e na influência dessas indagações sobre os pensadores cristãos e os reformadores dos séculos subsequentes. Não teve realmente peso sobre o futuro do cristianismo.

A disputa pelagiana não provocou antagonismos tão violentos entre o povo como provocaram as disputas no Império oriental. Os latinos eram menos especuladores e bem mais práticos em sua abordagem da religião. Suas atenções focalizavam-se principalmente nos perigos externos que os ameaçavam.

Os bispos e teólogos do Ocidente, que estavam explanando a doutrina cristã, concentravam-se num aspecto do cristianismo diferente daquele que chamava a atenção no Oriente. Enquanto os teólogos orientais debatiam-se com problemas ligados à Natureza de Cristo e ao significado da Trindade, os homens da Igreja latina, do Ocidente, debatiam sobre as dificuldades mais diretamente ligadas à natureza do homem e à vida cristã. O Oriente “ressaltava o caráter sobrenatural do cristianismo como fato do mundo objetivo e desenvolvia as doutrinas da Trindade e da Encarnação”-, o Ocidente “enfatizava o caráter sobrenatural do cristianismo como agente no mundo subjetivo e desenvolvia a doutrina do pecado e da graça” (Encyclopaedia Britannica).

As questões que se encontravam no centro das disputas doutrinárias no Ocidente eram estas: será mesmo o homem dotado de livre-arbítrio? Quando ele atua, isso é fruto de sua vontade ou já é parte de uma predeterminação? Assim como no caso de todas as exposições sobre a que vieram a ser consideradas heréticas, as questões fundamentais ainda não investigadas também vieram à tona. Estas questões levantavam um sério problema que exigia solução. Era necessário formular doutrinas que solucionassem o problema — neste caso as doutrinas que diziam respeito ao “pecado” e à “graça”. Para se compreender o desenvolvimento destas doutrinas, é preciso retornar na história, aos primórdios do século V.

Pelágio, o originador da controvérsia, viera da Inglaterra para Roma. Não se sabe muito a respeito de sua juventude. Com base naquilo que escreveu depois, parece que desejava entrar para a vida monástica, mas seu pai era contrário à ideia. Pelágio viveu a vida ascética de um monge e era com frequência chamado de “monge” por seus contemporâneos, mas jamais fez parte de qualquer ordem monástica. Ele repudiava o título de “monge” e afirmava que o ofício de professor estava aberto para todos, porque era o que ele desejava ser. Pretendia encorajar os leigos a se instruírem uns aos outros na . Apesar de afirmar que a vocação para o sacerdócio era sublime e nobre, não via qualquer diferença moral entre a vocação sacerdotal e a leiga. Enfatizava isso porque, desde o reconhecimento do cristianismo por parte de Constantino, parte dos clérigos havia passado a se ver como uma elite da comunidade. Pelágio argumentava que a responsabilidade moral cabia a todos os cristãos.

Ao chegar a Roma, Pelágio ficou horrorizado com a permissividade e o baixo nível de moralidade que ali encontrou. Pareceu-lhe que todos procuravam desculpas para isso, com base na afirmação de que a fraqueza era uma parte inevitável da condição humana. Em sua pregação, o primeiro objetivo era remover tudo o que via como uma pedra no caminho para a evolução do indivíduo. Pretendia mostrar que os seres humanos não eram incapazes e queria revitalizar a luta contra o pecado.

“Se é dever, então eu posso”, era o dito que usava, insistindo assim no livre-arbítrio humano em escolher. A graça de Deus estava ao alcance de todos para ajudar na própria Salvação, mas o homem tinha de se tornar merecedor, lutando por ela. Pelágio insistia que temos a capacidade de fazer tudo o que Deus ordena: “Onde quer que a vontade não seja absolutamente livre, não existe o pecado”. Esta concepção da vontade do homem baseava-se na teoria de que, a cada momento em que ele a aciona, não importando o que tenha vindo antes, a vontade encontra-se em equilíbrio, capaz de escolher o bem ou o mal.

Pelágio era um moralista, não um teólogo, e dava ênfase à exortação, não à doutrina. Nos círculos intelectuais do século V, a doutrina cristã teórica era considerada mais importante do que a ética cristã prática. Pelágio estava decidido a remediar isso.

Para o leitor moderno, estes ensinamentos de Pelágio pareceriam algo pueris, mas sem dúvidas também construtivos. E a princípio foram tratados sob essa luz, sem provocar qualquer oposição.

No ano de 410, Alarico, líder dos godos ocidentais, invadiu e saqueou Roma. Em companhia de seus companheiros e assistentes, Pelágio refugiou-se na África. Ali, um dos elementos que o apoiavam, um advogado chamado Coelestius, pregava em público, esclarecendo e desenvolvendo ainda mais os pontos de vista de Pelágio. Pelas explicações de Coelestius, parecia que a natureza humana não era inerentemente pecadora. O pecado de Adão prejudicara apenas ele mesmo e não toda a raça humana. Adão teria dado um exemplo do pecado que levava à imitação, e não uma mácula herdada por todos. Assim, as crianças nasciam com o poder de escolher o caminho certo. Se escolhesse de maneira acertada, o homem poderia viver sem o pecado, e isto antes mesmo do advento de Cristo.

Aos olhos dos “ortodoxos”, Coelestius negara a existência do “pecado original”, a necessidade do batismo na infância e até mesmo a eficácia da Encarnação e da morte de Cristo. Com base nisso, Coelestius não obteve a ordenação que buscava e teve seu nome vinculado ao de Pelágio nesta suspeita de heresia.

A esta altura, o próprio Pelágio já partira em viagem à Palestina, onde seus ensinamentos foram atacados, entre outros, por Jerônimo, o grande tradutor da Bíblia. Um sínodo realizado em Jerusalém submeteu a questão à apreciação do Papa. Mas outro sínodo, realizado em Lydda, excluiu a culpa de Pelágio por completo. No entanto, no ano seguinte, 416, ele foi condenado no Concilio de Cartago, e o Papa Inocêncio I confirmou a condenação. Seu sucessor, Zózimo, mudou a medida e declarou que Pelágio era ortodoxo e inocente, afirmando que, se a essencial fosse mantida, o resto seria apenas disputa desnecessária. Mas o Papa estava vacilante. Os líderes ortodoxos apelaram ao imperador Honório, dizendo que havia desordem em Roma e na Palestina. O poder do Estado foi invocado, e o imperador declarou Pelágio e Coelestius hereges, sujeitos a punição. Em 418, um concilio plenário de toda a África reafirmou o veredicto do Papa anterior. O Papa Zózimo também tinha mudado de ideia e escreveu uma carta excomungando Pelágio.

Durante todo o episódio, Pelágio desejava, acima de tudo, manter-se ortodoxo e não tinha vontade alguma de fundar uma escola herética, por isso acabou deixando a Palestina. Morreu ignorado e esquecido. Seus seguidores continuaram a disseminar suas ideias, mas, em 431, no concilio de Éfeso, o pelagianismo (junto com o nestorianismo) foi condenado como heresia.

Pelágio não teria desenvolvido suas ideias nem as teria transformado num sistema intelectual, não fossem os ataques contra sua pregação — acima de tudo, os ataques feitos pelo seu maior antagonista, Agostinho, que era então bispo de Hipona. Agostinho viu com mais clareza do que ninguém quais eram as implicações finais dos ensinamentos de Pelágio quanto às doutrinas consideradas essenciais para o cristianismo “ortodoxo” — as doutrinas relativas ao pecado original e à queda do homem.

A história da queda do homem, no Gênesis, que dava uma explicação de como o pecado e a morte teriam entrado no mundo criado por um Deus infinitamente bom, foi tornada uma parte essencial do ensinamento cristão sobre a Salvação. Não fosse por Paulo, Agostinho teria sido o primeiro a dar uma definição precisa para esta doutrina. Não se sabe até que ponto a história de Adão devia ser considerada pelos cristãos como um fato literal (a escola de Alexandria por certo a teria tratado como alegoria). No entanto, a importância da doutrina não reside aí, mas sim na aceitação da crença de uma corrupção humana herdada — de que temos a tendência natural para o mal, não para o bem.

Agostinho atacava os pontos de vista de Pelágio, e seus ataques foram se tornando mais intensos com a continuação da controvérsia. Mas, durante todo o episódio, ele jamais deixou de ter a mais elevada consideração por Pelágio como pessoa, continuando a falar dele com afeição e respeito. Elogiava o seu “(…) zelo verdadeiro por Deus” e aplaudia seu “(…) caráter nobre e vida pura. Eis um bom homem, de quem deve-se falar dos dois lados” (Agostinho, Dc Peccatorum Meritus).

Pelágio, por sua vez, tinha grande veneração por Agostinho e, até o fim, ansiava por reconciliar-se com ele. Mas Pelágio e Agostinho eram muito diferentes por natureza e experiência.

Os textos de Agostinho são ótimos, não apenas por causa da força do seu intelecto mas porque suas obras, mesmo as mais filosóficas, acham-se apoiadas em sua própria experiência espiritual e emocional. Elas surgiram a partir de sua vida interior. Pelágio não tinha experimentado a intensa compreensão de sua própria fraqueza que, para Agostinho, veio com sua conversão ao cristianismo. Para Pelágio, o centro do cristianismo era a luta moral em busca da perfeição; para Agostinho era abandonar-se em Deus. Por causa do seu caráter “puritano”, Pelágio não entendia bem este lado do cristianismo. Para ele, a concepção de Agostinho tinha o sabor de fraqueza moral.

Nas Confissões de Agostinho, um livro bastante lido naquele tempo, havia uma oração que dizia: “Dá o que Tu ordenas, ordena o que Tu queres”. Para Pelágio, isto parecia um encorajamento à passividade preguiçosa e ao abandono da auto-segurança. Sua reação a esta oração o fez intensificar suas pregações contra a preguiça moral que encontrava à sua volta. Pelágio considerava como questão dogmática básica a possibilidade de o homem viver sem pecado. Afirmava que seu questionamento não exigia que se apontasse para um homem completamente sem pecado, historicamente existente. O importante para ele era o fato de ser possível para o indivíduo viver sem pecado, por sua vontade própria. Deus ordenara isso, dizia ele, e Deus não teria ordenado o impossível.

A afirmação enfática de Pelágio de que o homem, vivendo nesta Terra, pode estar completamente sem pecado e usar sua própria força de vontade para isso conseguir, era parte de sua pregação evangélica — encorajar o povo cristão a melhorar sua vida. Ele não tinha percebido que sua descrição de como o cristão devia viver, acabaria por questionar alguns dogmas cristãos fundamentais, provocando problemas muito difíceis com respeito ao “livre-arbítrio do homem”.

A primeira vista, os “ortodoxos”, ao condenar Coelestius e atacar Pelágio durante os Sínodos de Jerusalém e Cartago, parecem ser intérpretes intolerantes e bitolados do dogma, denunciando pensadores sensatos e de mente aberta. Coelestius e Pelágio foram atacados por afirmarem que o pecado de Adão não condenava toda a raça humana à condição inevitável de pecado, que as crianças não batizadas não estavam condenadas automaticamente, e que a raça humana não morre por causa de Adão nem ressuscita por causa de Cristo. Mas as obras de Agostinho, refutando as ideias de Pelágio, mostram que esses ataques levaram a questões mais profundas, acabando por se transformar em teorias de grande importância filosófica e religiosa para a época. E Agostinho era um ferrenho defensor da “ortodoxia” — sustentando que a tradição católica, por intermédio dos apóstolos, era o único vínculo com a Revelação cristã original.

Na controvérsia pelagiana, os contínuos debates e contra-debates levaram Agostinho a uma expressão tão enfática de seus pontos de vista que estes, por fim, se transformaram em doutrinas de uma rigidez intolerável. No entanto, mesmo em seu ponto mais extremo, os textos de Agostinho revelam uma concepção mística e teocêntrica do cristianismo. Ele abrangia aparentes contradições e paradoxos, em contraste com a abordagem racionalista e humanitária de seu oponente.

A partir da experiência de sua própria vida, Agostinho tinha convicção total de que, por si mesmo, seria incapaz de escapar daquilo que considerava seus pecados mais prejudiciais, por mais que desejasse fazê-lo. Acreditava que era apenas a graça de Deus que podia libertá-lo dos pecados. Assim, em qualquer disputa filosófica sobre “pecado”, “graça” e “livre-arbítrio”, Agostinho escrevia baseado não apenas na doutrina aceita, mas no que ele considerava como fato, por sua própria experiência pessoal.

Quando Pelágio foi exonerado no sínodo de Lydda, parecendo que ele tinha se retratado de tudo que poderia ser de natureza ortodoxa, Agostinho ficou exultante; e foi declarado que Pelágio estava de novo em comunhão com a Igreja católica. Mas Agostinho suspeitava de que nem tudo era tão claro como parecia ser. E ele estava certo.

Pelágio continuou a afirmar que as questões entre ele e seus oponentes não eram de natureza dogmática, mas apenas diferenças de opinião quanto a um ponto específico. Assim, apesar de não ter desejo algum de rebelar-se contra a “ortodoxia”, ele recomeçou a escrever. Suas ideias estavam se disseminando — os seres humanos, por sua própria vontade, podem e devem dar o primeiro passo na direção da crença e da em Deus e em Cristo; podem, por sua própria vontade, fazer a escolha no sentido de obedecer.

Tinha sido com a finalidade específica de refutar estas afirmações que Agostinho entrara na controvérsia. Segundo ele, os que dizem que o homem pode viver de maneira correta a partir de sua própria natureza, tornam a Cruz de Cristo inteiramente sem efeito; apesar de a natureza humana ter sido criada imaculada, ela foi corrompida pelo pecado de Adão. Adão tinha pecado deliberadamente por orgulho-a crença de que era sua própria vontade que tinha de ser obedecida, não a de Deus. A tendência ao pecado teria sido então passada para os descendentes de Adão. Portanto, todos tinham pecado em Adão, assim como por si mesmos, e só poderiam ser redimidos por Cristo, por sua dádiva, e não por seus próprios méritos.