Zinzendorf Coração

PIERRE DEGHAYE — A DOUTRINA ESOTÉRICA DE ZINZENDORF

Tradução gentilmente feita por meu amigo Antonio Carneiro

DUPLO SENTIDO DA PALAVRA CORAÇÃO

Zinzendorf escolheu os mistérios das noções que correspondem ao plano da simples criatura e que ele integra na sua predicação pública. Essas noções são tratadas com pedagogia própria à esta última. Isto é, quando se fala a linguagem do coração se desconsidera a da razão.

Ora, como nas tradições místicas, a palavra coração tem duplo sentido na doutrina de Zinzendorf. Assim como existe uma parte superior da alma que os místicos identificam com o espírito, existe uma acepção superior da palavra coração. Existe por outro lado a alma sensível, e a esse nível o coração terá o sentido comum.

Poiret, editor da Teologia Mística, nos explica esta ambivalência em seu prefácio à segunda parte da Teologia do Coração1: « O coração e a alma na Teologia Mística são uma mesma coisa. E assim como na alma se distingue a parte sensível, que são os bons desígnios, as afeições piedosas, os sentimentos de amor, alegria, tristeza para as coisas divinas (akedia) ou sua privação, de junto da parte espiritual que é o repouso, a pausa final, a aquiescência secreta e quase imperceptível onde a alma se põe acima e frequentemente ao encontro de tudo o que ela ressente: é preciso do mesmo modo distinguir no coração essas duas partes, cuja confusão nos transformaria em uma fonte de mil males se tomássemos uma pela outra iríamos querer nos fixar à parte sensível e nós, aí basear para nos entregar à espiritual. Ordinariamente, para as distinguir, chama-se a primeira simplesmente alma, com frequência a parte inferior, e mesmo o coração em um sentido particular, ainda que essa palavra em um sentido mais elevado acentue também algumas vezes a segunda, que se chama de outra maneira e quase sempre espírito. São Paulo fez em alguma parte esta distinção, quando deseja aos Tessalonicenses (2 Ts. 5, 23) que Deus lhes conserve em pureza o espírito, a alma e o corpo; quando disse aos Hebreus (cap. IV, 12) que a palavra e a virtude animada de Deus penetrando e agindo interiormente, separa a alma de junto do espírito. As pessoas da Academia parecem não ter nada compreendido desta distinção, ninguém mais que Lutero, que ridicularizava Orígenes porque ela lhe era familiar. Mas os Místicos esclarecidos fazem disso o principal fundamento da Vida espiritual. »

Zinzendorf imita os místicos sobre esse ponto, pois esta tripartição é fundamental em sua doutrina. Ele tomou emprestado de Orígenes assim como à toda tradição mística. Zinzendorf distingue entre o coração de pedra e o coração de carne que, segundo Ezequiel (36:26), é sinônimo de espírito novo.


NOTAS:



  1. A teologia do coração, ou coleção de alguns tratados que contêm as luzes mais divinas das Almas simples e puras, segunda edição, Colônia, 1697. Prefácio de Pierre Poiret, à qual pedimos emprestado a passagem citada, não está paginada.[]