von Balthasar (Orígenes:51-54) – participação em Deus

Assim, tudo o que a alma tem é “graça” e todo relacionamento de justiça é englobado por um relacionamento como misericórdia.


Se “espírito” é participação da alma em Deus, então sua essência última é determinada precisamente a partir dessa participação. Somente na orientação para Deus é imortal (54), somente na derivação de Deus é sempre novo em ser (55) (56) (57), somente através do relacionamento com ele é bom e feliz (56) (57) (58) (59) (60) (61). Assim, tudo o que a alma tem é “graça” (64) e todo relacionamento de justiça é englobado por um relacionamento como misericórdia (62) (63). Assim, a alma deve lutar por essa participação com o mais absoluto dos compromissos (65), e construir sua vida sobre o fundamento dessa graça imerecida (66).

54 Todo aquele que participa de alguma coisa é, sem dúvida, de uma substância e de uma natureza com quem participa da mesma coisa. Por exemplo, todos os olhos compartilham a luz e, portanto, todos os olhos que compartilham a luz são de uma natureza. . . . Todo espírito que participa da luz intelectual deve, sem dúvida, ser da mesma natureza com todo espírito que também participa da luz intelectual. . . . Assim [os seres humanos] parecem ter uma certa relação familiar com Deus. E, enquanto Deus conhece todas as coisas e nenhum ser espiritual está oculto por si mesmo (pois somente Deus Pai com seu Filho unigênito e o Espírito Santo possuem autoconhecimento, bem como conhecimento do que é criado), uma razão o espírito dotado pode ainda, progredindo de pequenas coisas para maiores e de “visíveis” para “invisíveis” (Cl 1:16), chegar a uma compreensão mais perfeita. . . . Deus possui uma natureza espiritual e racional, como também seu Filho unigênito e o Espírito Santo; os anjos e as dominações e os demais poderes celestiais possuem esta natureza, assim como também o “ser humano interior” (cf. 2 Cor 4,16) que foi fundado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Segue-se disso que Deus e esses seres são de alguma forma da mesma substância. . . . Mas os poderes celestiais são incorruptíveis e imortais; e também, sem dúvida, é a substância da alma humana incorruptível e imortal. Mas há ainda mais do que isso: porque a própria natureza do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em cuja luz puramente intelectual compartilha toda a criação, é incorruptível e eterna, segue-se bastante lógica e necessariamente que toda substância que compartilha nessa natureza eterna também permanecerá para sempre e será incorruptível e eterna, de modo que a eternidade da bondade divina também seria reconhecida no fato de que os seres que recebem seus benefícios também são eternos. . . . Não parece até ímpio pensar que um espírito capaz de receber Deus possa ser reduzido em substância a nada? Como se o próprio fato de poder compreender e perceber Deus fosse insuficiente para lhe assegurar a eternidade!

55 Porque Deus fez todas as coisas para que existissem; e o que foi feito para existir é incapaz de não existir.

56 “Sede santos, porque também eu sou santo” (cf. Lv 20,26; Mt 5,48). Mas por mais que se avance em santidade, por mais pureza e sinceridade que se adquira, um ser humano não pode ser santo como o Senhor, porque ele é o doador de santidade, o ser humano seu receptor, ele é a fonte de santidade, o ser humano é um bebedor da fonte, é a luz da santidade, o ser humano é o contemplador da santa luz; e assim “não há santo como o Senhor, não há outro além de ti” (1 Sm 2:2). O que significa dizer: “Não há ninguém além de ti”, eu não entendo. Se tivesse dito: “Não há Deus além de você” ou “Não há criador além de você”, ou tivesse acrescentado algo assim, não haveria problema. Mas se agora diz “Não há ninguém além de ti”, é isso que me parece significar aqui: nenhuma dessas coisas que são possuem sua existência por natureza. Só Tu, ó Senhor, és aquele a quem a tua existência não foi dada por ninguém. Porque todos nós, que é toda a criação, não existíamos antes de sermos criados; assim, que somos, é [devido] à vontade do Criador. E porque houve um tempo em que não éramos, não é totalmente correto se for dito de nós, sem qualificação, que existimos. . . . Pois a sombra não é nada em comparação com o corpo; e em comparação com o fogo, a fumaça também não é nada.

57 Só Deus diz: “Eu sou o que sou” (Ex 3,14); e uma só é a substância de Deus que sempre é. Quem se une a ele “se torna um espírito com ele” (1 Cor 6,17) e se diz que é por meio daquele que sempre é. Mas quem está longe dele e não tem parte nele, é dito que nem mesmo o é, assim como nós éramos quando éramos pagãos antes de chegarmos ao reconhecimento da verdade divina. E assim é dito que Deus “chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4:17), bem como as que existem.

58 Toda criatura dotada de razão tem necessidade de participação na Trindade.

59 “O único que tem a imortalidade” (1 Tm 6:16). Está implícito nisso a suposição de que nenhum outro ser dotado de razão possui a bem-aventurança como parte essencial ou inseparável de sua natureza.

60 A justiça está em nós como um eco; chega-nos por reverberação da primeira justiça.

61 E não é possível a alguém que participa da vida, e por isso é chamado de vivo, tornar-se sempre a própria vida, e aquele que participa da justiça, e por isso é chamado justo, tornar-se igual à própria justiça.

62 Cada ser humano, como ser humano, precisa da misericórdia de Deus.

63 Mesmo o mais justo, diante do rigor do juízo de Deus, tem necessidade da misericórdia de Deus, porque o próprio fato de parecer justo se deve à misericórdia de Deus. Pois o que alguém fez que poderia ser digno de bem-aventurança eterna?

64 Graça, portanto, é tudo o que aquela pessoa que não era, e agora é, está recebendo daquele que sempre foi, é e será para sempre.

65 Cada um de vocês deve se esforçar para se tornar um divisor daquela água que está acima e que está abaixo, isto é, adquirindo entendimento e participação naquela água espiritual que está “acima do firmamento” (Gn 1,7), e extrai “do seu coração rios de água viva” (Jo 7,38) “que brotam para a vida eterna” (Jo 4,14), separados, é claro, e distinguidos da água que está embaixo, a água do abismo em que se diz estar a escuridão.

66 Pois devemos depender somente de Deus e de nenhum outro, mesmo que se diga que alguém saiu do paraíso de Deus. Como diz Paulo: “Ainda que nós ou um anjo do céu vos pregasse… seja anátema” (Gl 1,8).

67 É impossível que, num ser humano que já atingiu a idade da compreensão e da distinção entre o bem e o mal, não haja injustiça nem justiça. Se for assim, então uma alma não pode ser encontrada sem um desses dois; e é certo que se está se afastando do mal, já está no bem. . . . E assim o Apóstolo tem razão ao dizer (onde trata do perdão dos pecados e do encobrimento da culpa e indica que Deus não conta os pecados) que isso “é imputado” ao homem “como justiça” (cf. Rm 4 :5) embora ainda não tenha realizado obras justas, mas unicamente porque acreditou naquele que justifica o injusto. Pois o princípio de ser justificado por Deus é a fé que crê no justificador. E esta fé, justificada, como a raiz que recebeu a chuva, apega-se ao fundamento da alma, de modo que, quando começa a ser cultivada pela lei de Deus, brotam dela ramos que dão fruto de obras. Portanto, não é das obras que cresce a raiz da justiça, mas da raiz da justiça cresce o fruto das obras.