Vida e vivente [MHSV]

É como uma antítese formidável e intemporal que o cristianismo opõe a esses pensamentos da conspurcação da vida sua intuição decisiva da Vida como VERDADE. É como um toque de trombeta a prefigurar o dos anjos do Apocalipse o que a palavra de Cristo retine: “Eu sou o Caminho, a VERDADE e a Vida” (João 14,6). Começamos a entender os dois últimos termos desta proposição, por pouco que os leiamos na ordem. Porque Cristo não diz somente, contra o cientificismo e o positivismo de todos os tempos, contra a fenomenologia grega, contra Schopenhauer e contra Freud, que, longe de ser absurda, cega ou inconsciente, [74] estranha à fenomenalidade, a Vida é VERDADE. Muito pelo contrário, ele afirma, de modo mais fundamental, que a VERDADE é Vida. A Revelação primordial que arranca tudo do nada dando-lhe o aparecer e, assim, o ser, revela-se antes de tudo a si mesma num abraço de antes das coisas, de antes do mundo, e que não deve nada a este – nesta autofruição absoluta que não tem outro nome senão o de Vida. MHSV: III


O cristianismo se concentra na relação da vida com o vivente, e isso tanto em Deus quanto no homem. E a razão por que a elucidação daquilo que ele entende por vida, mais exatamente sua interpretação da vida como VERDADE, fornece o antecedente indispensável à compreensão de seu ensinamento. Sem sabê-lo rigoroso no que para ele é a vida, semelhante ensinamento se reduz a um tecido de proposições enigmáticas que só são audíveis para os “crentes”, isto é, para aqueles que as afirmam sem compreendê-la. Para quem penetra, ao contrário, na essência interior da Vida, esse conteúdo enigmático do cristianismo se ilumina subitamente numa luz de tal violência, que todo homem percebendo-a sob essa iluminação se vê profundamente abalado. Tudo o que lhe aparece até ali com evidência, esse mundo tão sólido e tão seguro em que é impossível não crer, as coisas que o povoam, os assuntos dos homens que constituem o tema cotidiano de sua inquietação e preocupação, os saberes que concernem tanto a essas coisas quanto a suas atividades, essa rede de ciências que se desenvolvem hoje com um rigor e uma rapidez impressionantes, as proezas técnicas que dela resultam – tudo isso subitamente se verte na insignificância. Como a Vida misteriosa de Deus evocada numa série de “dogmas” é suscetível de produzir em nós semelhante efeito, como penetrar até ela a fim de tomar parte em sua Revelação e de se encontrar transformado por ela? Aí estão muito precisamente as questões do cristianismo, às quais já estamos em condições de dar respostas parciais. MHSV: IV


A resposta da fenomenologia da vida de que traçamos o primeiro esboço é esta: temos acesso à própria Vida. Onde? Na vida. Como? Pela Vida. Que seja na Vida e somente por ela que se pode ter acesso à Vida implica um pressuposto decisivo: é a própria Vida que chega a si. Tal era precisamente a primeira aproximação fenomenológica da vida, sua definição como verdade, ou antes, a definição da VERDADE como Vida: a Vida é autorrevelação. Nela é ela mesma que realiza a revelação e é ela mesma que é revelada. E porque é a própria Vida que chega originalmente a si, e isso enquanto é autorrevelação, que ela vem antes de tudo. Porque nada nem ninguém jamais poderão chegar a ela se seu chegar à Vida não se apoiar sobre o próprio chegar da Vida a si – mais ainda: se seu chegar à vida não se identificar com o chegar original da Vida a si mesma. MHSV: IV