A elaboração do conceito cristão de VERDADE fez que ela aparecesse encontrando sua essência na Vida. Enquanto idêntica à VERDADE, a Vida se compreende já de início como fenomenológica. Que a Vida seja VERDADE significa que ela é manifestação e revelação, no sentido original que reconhecemos a esses termos. A Vida não é “verdadeira”, o que não quereria dizer nada além disto: ela se manifesta, ela se mostra. Neste caso, nada a distinguiria de um fenômeno qualquer, de tudo o que se mostra em geral. Tal proposição não só permaneceria indeterminada, mas deixaria na sombra o problema da VERDADE e notadamente o da verdade própria da Vida. Não somente o que se mostra pressupõe uma “mostração”, uma manifestação prévia sem a qual nada jamais se manifestaria a nós, nenhum fenômeno de espécie alguma. Mas a questão central da fenomenologia, diretamente implicada na inteligência do cristianismo, é a de saber como a manifestação torna manifesto tudo o que ela manifesta, mais essencialmente como ela se manifesta a si mesma. Antes de tornar manifesto o que quer que seja, com efeito, e para poder fazê-lo, a manifestação deve manifestar-se a si mesma na pureza, enquanto tal. Antes de iluminar cada coisa, a luz brilha de seu próprio brilho. É quando se põe a questão central da fenomenologia, que se descobre a nós a extraordinária originalidade do cristianismo, a clivagem decisiva sobre a qual ele repousa inteiramente. Ao conceito grego de fenômeno que vai determinar o pensamento do Ocidente, a interpretação da manifestação das coisas, mais rigorosamente da manifestação desta manifestação como verdade do mundo, verdade cuja fenomenalidade é a do “lá fora”, o cristianismo opõe-lhe de modo maciço sua concepção da VERDADE [53] como Vida. Vida recebe então no cristianismo uma significação fenomenológica tão original quanto radical. Vida designa uma manifestação pura, irredutível todavia à do mundo, uma revelação original que não é a revelação de outra coisa e que não depende de nada de outro, mas uma revelação de si, esta autorrevelação absoluta que é precisamente a Vida. MHSV: III
Por sua essência fenomenológica, porque ela é, assim, VERDADE, manifestação pura, revelação, a Vida de que fala o cristianismo difere inteiramente do objeto da biologia. O que caracteriza este último – trate-se de neurônios, de corrente elétrica, de cadeias de ácidos, de células, de propriedades químicas ou ainda de seus últimos constituintes, que são as partículas materiais – é que ele em si se vê estranho à fenomenalidade. Sem dúvida esses diversos elementos – físicos, químicos ou especificamente biológicos – são todos fenômenos ou remetem a fenômenos, à falta do que nenhuma ciência, por mais elaboradas ou sofisticadas que sejam as metodologias, poderia saber nada disso. Mas precisamente esses diversos fenômenos não têm por si sua fenomenalidade, sua capacidade de se mostrar a nós. Esta capacidade de se mostrar e, assim, de se tornar objeto de um saber possível, eles a devem a um poder de manifestação que lhes é estranho, na medida em que em si mesmos eles são “cegos”. É esse poder de manifestação estranho aos elementos em si cegos que a biologia estuda é a verdade do mundo. MHSV: III
A oposição radical entre a matéria fenomenológica de que é feita a Vida enquanto autorrevelação, enquanto VERDADE original, e, de outro lado, a matéria não fenomenológica dos elementos constitutivos das propriedades químicas ou propriamente biológicas suscita uma questão embaraçosa mas incontornável: a da relação existente entre a abordagem do cristianismo e a abordagem científica contemporânea, relação que não pode aparecer, ao que parece, senão como conflitante. Cristo ignorava tudo das descobertas sensacionais da biologia do século XX. Em todo o caso, o discurso que ele professa sobre a vida absolutamente não leva em conta essas descobertas. [54] Quando ele declara, numa palavra à qual teremos de voltar: “Eu sou a Vida” (João 14,6), não quer significar que ele é um composto de moléculas. E mesmo aqueles entre seus contemporâneos que não veem nele senão um homem, no máximo um profeta, nem por isso o consideram um “homem neuronal”. MHSV: III