Assim a concepção do homem que emerge com o cristianismo inverte completamente a concepção tradicional e o conjunto de suas variantes vindouras. Ela não a inverte no sentido de pôr no alto o que está embaixo e vice-versa. Não o inverte ao modo de uma inversão axiológica procedente de uma nova avaliação, que privilegiasse o sensível, por exemplo, à custa da inteligível, ou inversamente. Para dizê-lo em passant, a antítese entre o sensível e o inteligível e a valorização ou condenação de um ou de outro são totalmente estranhas ao cristianismo, bem como à ética que ele seria suscetível de professar com respeito a eles. E isso porque nem o sensível nem o inteligível pertencem à essência do homem tal como a compreende o cristianismo. E não pertencem a esta essência, porque sua maneira de se mostrar a um e a outro decorre da maneira de se mostrar do mundo e é tomada dela. A inversão da concepção do homem a que o cristianismo procedeu de uma vez por todas não consiste na inversão dos elementos incluídos na concepção reinante: consiste em sua exclusão. E outra essência fenomenológica a que define o homem fenomenológico transcendental cristão, outra verdade. Outro modo de fenomenalização da fenomenalidade constitui sua realidade substancial, a carne fenomenológica que é sua carne. A essa substituição radical de um modo de verdade por outro procede o cristianismo ao pôr o homem como filho. Desde esse momento, é a partir de seu nascimento na Vida que o homem deve ser compreendido, e pois a partir da Vida mesma e da VERDADE que lhe é própria. Sucede porém que a Vida fenomenológica absoluta a partir da qual o homem pode e deve ser compreendido, na medida em que é filho, é a Vida absoluta de Deus mesmo. Dizer que o homem é filho [141] na medida em que não há filho senão na Vida e que esta só e única Vida é a de Deus mesmo é dizer também que ele é Filho de Deus. A expressão “Filho de Deus” é tautológica. MHSV: VI
Introduzamos aqui um conceito decisivo e que, para dizer a verdade, deveria ter sido introduzido antes, uma vez que ele governa a inteligência filosófica da essência da vida: o conceito de autoafecção.1) O próprio da vida, com efeito, é que ela se autoafeta. Esta autoafecção define seu viver, o “experienciar-se a si mesma” em que ela consiste. Afecção quer dizer, em geral: manifestação. Se um ente do mundo me afeta, é porque ele se faz sentir por mim, se mostra a mim, se dá a mim, entra na minha experiência como quer que seja. E isso vale para o próprio mundo que me afeta enquanto se manifesta a mim – sendo essa manifestação do mundo, como vimos, sua “verdade”. VERDADE e afecção são termos equivalentes. Ao conceito de afecção que designa toda e qualquer afecção e, assim, toda manifestação – a afecção por um barulho que ouço, por um objeto que vejo, por um odor que sinto, ou ainda a afecção de meu espírito por uma imagem ou qualquer outro conteúdo representativo –, opõe-se de modo radical o conceito de autoafecção. O que me afeta na autoafecção já não é precisamente nada estranho ou exterior a mim, que sou afetado, nenhum objeto do mundo, por conseguinte, nem esse mesmo mundo. O que afeta no caso da autoafecção é o mesmo que o que é afetado. Mas esta situação extraordinária em que o que afeta é o mesmo que o que é afetado não se realiza em nenhuma parte além da vida. Nesta, no entanto, tal situação se realiza absolutamente, de tal modo que ela define a essência desta vida. Pois a vida é isto: o que se autoafeta no sentido radical e decisivo de que esta vida que é afecção, que é afetada, precisamente não é afetada senão por si mesma; não o é por nenhuma exterioridade nem por nada exterior. Desse modo, é ela própria que constitui o conteúdo de sua afecção. No conceito de autoafecção como essência da vida, está implicado [151] seu acosmismo, o fato de que, não sendo afetada por nada diferente ou exterior, radicalmente estranha ao mundo, ela se cumpre em si mesma na suficiência absoluta de sua interioridade radical – não experienciando senão a si, não sendo afetada senão por si, antes de qualquer mundo possível e independentemente dele. MHSV: VI