A separação entre a Vida e o Indivíduo revela suas consequências decisivas e catastróficas quando o Indivíduo é reconduzido à sua essência própria, a ipseidade sem a qual nenhum Indivíduo seria possível. Em nossa primeira aproximação à vida (capítulo 3), mostramos que a vinda da vida ao primeiro plano na filosofia revolucionária de Schopenhauer não tinha conseguido, afinal de contas, senão diminuí-la. E isso porque, à falta de ser reconhecida em sua [171] fenomenalidade própria, privada ao contrário desta, a qual se encontrava confiada à representação, isto é, ao mundo, a vida não era mais do que uma força cega. Ora, é dessa incapacidade de pensar a vida como VERDADE e, mais ainda, como a essência original desta, uma razão que se descobre para nós agora: precisamente a separação entre a Vida e o Indivíduo. Uma vida sem o indivíduo é, pois, uma vida sem ipseidade – sem Si –, é uma vida que não se experiencia a si mesma e que se encontra na impossibilidade de fazê-lo, uma vida privada da essência do viver, privada de sua própria essência – uma vida privada de vida, estranha à vida. Se o conceito de vida é conservado para designar esta entidade absurda de uma vida estranha à essência da vida, de uma vida que não se experiencia a si mesma, isso só pode dar-se com uma condição. Com a condição de que, por um golpe de força, esta entidade seja erigida em realidade e, mais ainda, em princípio de toda e qualquer realidade. Uma vida que não se experiencia a si mesma é uma vida inconsciente. O conceito de vida inconsciente não resulta unicamente da oposição entre a vida e a verdade do mundo, mas deve ser compreendido mais rigorosamente como a expressão fenomenológica do conceito de uma vida privada de ipseidade, incapaz de se experienciar a si mesma, estranha ao indivíduo – de uma vida anônima. MHSV: VII
A parábola conduz aqui para além de si mesma. Ela permite entender a palavra que fala sem parábola, antes de toda e qualquer parábola, aquela que tem e reúne em si as tautologias decisivas do [178] cristianismo: “Eu sou o Caminho, a VERDADE e a Vida” (João 14,6). A identidade dos quatro termos é posta aqui: Eu = o Caminho = a VERDADE = a Vida. Quanto à última identidade, VERDADE = Vida, nós a estabelecemos longamente. E a tese fundamental de uma fenomenologia da vida. Segundo esta fenomenologia, a fenomenalidade se fenomenaliza originariamente numa autoafecção patética que define a única autorrevelação concebível, autorrevelação em que consiste a essência da vida. A Vida, portanto – e não, antes de tudo, a abertura de um mundo no ek-stase do “lá fora” –, constitui a VERDADE original, a fenomenalidade original. A VERDADE = a Vida. MHSV: VII
E agora, relacionando o segundo termo ao primeiro, a palavra diz: “Eu sou o Caminho”. Eu = o Caminho. Esta identidade fundamental só tem sentido se estiver relacionada às duas outras tautologias que compõem a palavra – ou seja, com duas condições. A primeira é que o Caminho seja constituído pela VERDADE, o que ele é seguramente, segundo a tese mais geral da fenomenologia. Mas a segunda condição, a última tautologia, é decisiva: que a VERDADE seja constituída pela Vida. Pois, se ela fosse constituída pelo mundo tanto segundo a filosofia tradicional como, aliás, segundo a crença popular, então o mundo é que constituiria o caminho, o caminho de acesso a tudo o que se pode mostrar a nós. Sucede porém que, se fosse esse o caso, não haveria para nós nem Vida nem Eu (nenhuma verdade tampouco, aliás, nenhum mundo, mas não é aqui o lugar de estabelecê-lo). MHSV: VII