Giuseppe Faggin — Meister Eckhart e a mística medieval alemã
Excertos da tradução portuguesa da ECE Editora, 1984
A ESTRUTURA TEOLÓGICO-METAFÍSICA DA MÍSTICA ECKHARTIANA
(continuação)
Sem pensamento não há vida espiritual, ainda que esta não se reduza finalmente ao pensamento. O Uno, com efeito, não é a mística noite que anula em si a distinção, senão que é o princípio do dualismo e da distinção, porque é Potência geradora. Se as hipóstases engendradas (o Nous e a Alma) não existissem, todo o universo se resumiria em uma oca identidade; se o Uno não fosse, o múltiplo não existiria nem teria um fim supremo. Uma vez consolidado o Uno, o esforço máximo de Plotino consiste em salvar, no seio do Uno, o múltiplo e as distinções, isto é, a articulação do ser e do pensamento: o Uno não deve conduzir-nos à posição eleática, porque nem sequer se poderia falar do Uno se não existisse o diferente do Uno. Os distintos planos da vida universal estabelecem, portanto, o caráter concreto do real e constituem a paisagem metafísica onde se moverá a alma individual com as indefinidas possibilidades de seu destino. Pois bem, o que o Uno engendra não pode ser inferior a ele, ainda que participando dele: o Nous é inferior ao Uno e por conseguinte é dualidade de ser — pensamento e multiplicidade ideal; mas, ao participar do Uno, é infinito Cosmos noético que com a inesgotável riqueza das ideias e das inteligências constitui uma imóvel unidade eterna e idêntica a si mesma. A Alma é inferior ao Nous enquanto é princípio de movimento e de vida e está destinada a animar uma realidade corpórea; mas por participar do Nous e estar eternamente orientada em direção a ele em uma indefectível contemplação, é alma universal que implica uma infinita riqueza de almas individuais, capazes de viver uma personalíssima vida própria de acordo e também em oposição, com a vida cósmica e de alcançar o supremo limite da realidade. Cada alma em particular, por sua vez, por meio das razões seminais, com sua potência formadora pode dar vida a um corpo (mais ainda, a uma série de existências corpóreas) e realizar no tempo e no espaço sua vida sensitiva: o corpo está nela e as sensações são seus atos. 0 mundo sensível não é então mais que a expressão visível da Animação universal e um símbolo vivo do Inteligível e do Eterno; a matéria é a tenebrosa matriz deste mundo que faz surgir de si e que em si absorve o contínuo fluir das aparências fenomênicas. é absoluto não-ser e absoluto nada e limite inferior extremo do processo divino, lugar em que aparecem os efeitos das obras da alma.
Uno, Nous e Alma não podem então reduzir-se a uma só realidade senão com a condição de anular o próprio ser e a natureza do Uno gerador; mas é conveniente recordar também que não se deve colocar o Uno junto com as outras duas hipóstases se não o quisermos destruir como Uno, transformando-o em um determinado aspecto da realidade. O Uno é o onipresente; presente ao Nous não menos que à Alma e ao cosmos sensível; mas imanência não significa identidade. Daí que os diferentes planos hipostáticos, apesar dos titânicos esforços da especulação plotiniana, fiquem separados e distintos, mas não deduzidos, e que a distinção não se concilie com a unidade. Mas o que fica sem concatenação lógica nem explicação metafísica encontra sua mediação vital na obra da alma, que com seu impulso amoroso pode percorrer todos os graus do real, voltar da exterioridade fenomênica ao seu princípio e encontrar novamente, na clareza do seu pensamento, a riqueza do Nous e ao Uno mesmo no fundo do seu espírito. Intermediária entre o Nous e o mundo, é portadora do tempo e de sua dramaticidade e delineia o problema de sua história. Fora dela a história não existe, nela está seu destino. A alma pode dispersar-se na exterioridade que é dor e morte e pode reencontrar-se em seu interior e na livre unidade consigo mesma submergir-se em um gozo sobre-humano. O Eterno se torna valor porque ela assim o quer e sua vontade não é arbítrio porque se ajusta ao Eterno. Mas a relação da alma com Deus não é possível senão através da mediação do Nous: não é obra nem do pensamento nem da vontade,— mas como dirão os místicos cristãos — do ápice da mente. A alma é a irredutível substância individual e enquanto tal, não é nem o Nous nem o Uno, ainda que vivendo no Nous e no Uno; mas, por outro lado, imanência não quer dizer identidade. E ademais a alma individual não pode nunca alcançar os limites da Alma universal, do Nous ou do Uno, porque a potência destes é infinita e não conhece limites: viver neles não significa para a alma anular-se ontologicamente, porque não se anula o que emana do Uno, senão reunir-se com eles esquecendo sua própria finitude.