V. Shekhinah
Lembraríamos ainda que a manifestação da Shekinah ou “presença divina” é sempre representada como uma luz. (Guénon)
Javary
Tr. Antonio Carneiro de Cabalistas Cristãos (org. Antoine Faivre)
A palavra Sekina, formada sobre uma raiz bíblica, mas, desconhecida dos textos da Primeira Aliança, nasceu no primeiro século de nossa era: encontra-se pela primeira vez nessas traduções aramaicas da Bíblia, que se chamam Targumin. Essa palavra é então contemporânea de Jesus Cristo. A raiz Shin, Caph, Nun, significa habitar; em latim se traduziu a palavra por “inhabitatio”, falta de habitação, ou Presença de Deus no mundo. Considera-se que é a Sekina que se manifesta na Sarça Ardente, no Sinai, na Arca da Aliança, no Santo dos Santos; vê-se mesmo, às vezes, nela um dos três anjos que apareceram para Abraão (v. Ícones da Trindade), ou aquele contra o qual lutou Jacó. Suas manifestações são frequentemente acompanhadas de fenômenos sensíveis, sobretudo luminosos, e essa palavra se tornou o equivalente à palavra glória, “kavod” em hebreu. Deus presente entre os homens, Deus glorificado, tal é então o sentido dessa palavra que, ao longo da literatura judaica, se enriqueceu de conotações novas: para os filósofos, é o intelecto agente, para os rabinos o equivalente ao Espírito Santo. Mas, não é senão nos textos da Cabala que essa palavra tomou um sentido muito específico e tornou-se o aspecto feminino de Deus, ou a Esposa do Santo, louvado seja! Os cabalistas consideram que Deus, às vezes, é macho e fêmea, tanto que está escrito no Gênese:
Deus criou o homem à sua imagem,
Macho e fêmea o criou.
A Sekina se desdobra então, em Sekina superior, frequentemente assimilada à Bina, a terceira dos Sefirot, ou a Inteligência, e Sekina inferior, que é frequentemente assimilada à Malkuth, o Reino, a última dos Sefirot, uma sendo mãe e a outra filha. É então ao redor desse tema, sempre novo porque vivo, que Egídio de Viterbo drapejou os amplos desenvolvimentos líricos, que, onde se mesclaram, em um sincretismo harmonioso, reminiscências bíblicas, lembranças da mitologia grega ou latina, alusões cabalísticas; mas não esqueceu jamais que era cristão e multiplicou as referências para o Evangelho. A fé do humanista italiano é forte demais para assumir sem serem agitadas as tradições as mais diversas.
A Sekina será então o segundo polo de nosso estudo sobre os Nomes de Deus. Reencontraremos a mesma preocupação de estabelecer equivalências: « Nos dois nomes do Tetragrama e de Adonai, estão contidos todos nomes e sobrenomes da Sekina e dos dez Sefirot e dos anjos… » escreverá mais tarde Knorr von Rosenroth. Mas, se o tema da Sekina teve a preferência de Viterbo é que era mais rico de ressonâncias para a alma cristã que o tema do Tetragrama: permitia uma partição em Deus, que, portanto, não rompia a unidade; permitia ver Deus habitando entre os homens, sem, portanto, renunciar à sua glória; permitia, até mesmo, sem cair na idolatria, justificar o culto prestado à Virgem Maria. De fato, se as especulações sobre o Tetragrama acentuavam mais sobre a transcendência de Deus, era, sobretudo, sua imanência que estava posta em evidência no tema da Sekina; mas, um não excluía o outro, uma vez que esses dois polos da divindade se encontravam quando se tratava de evocar a Deus uno e trino.
Mostraremos então sucessivamente:
-* que a Sekina é também o equivalente aos outros Nomes de Deus,
-* que os cabalistas cristãos se serviram da palavra Sekina para nomear Deus Pai, ou Deus Verbo, ou Deus Espírito,
-* que Jesus Cristo em sua vida terrestre evoca frequentemente a Sekina,
-* que a Virgem Maria, em sua feminilidade, recolheu mais de um símbolo, mais de uma designação, atribuídas pelos cabalistas judeus à Sekina.
Não insistiremos sobre as equivalências possíveis entre a Sekina e os outros nomes de Deus: E. de Viterbo notou que é à Sekina que foi dado o nome de Adonai e que esse grande nome não é um sobrenome (Scech. fol. 337v). E. de Viterbo fala também de Eloim Bina (Ibid., 330), Bina sendo a Sekina superior.
René de Tryon-Montalembert e Kurt Hruby
A FILHA, A CRIADA E A ESPOSA DO REI
Precisando: trata-se aqui do décimo Sefiró. Recordamo-nos de que ele nos apareceu como o conjunto da natureza criada, sensível, colocando-se no nosso frágil e perecível nível humano. Contrariamente à literatura rabínica, que se recusa a ver neste décimo Sefiró algo mais do que uma «face» de Deus, a sua «face» no universo criado, os cabalistas vão transformar essa «face» numa espécie de identidade feminina: a Shekhinah.
A Shekhinah é uma figura cheia de mistério; com ela, a sexualidade penetra o universo. A Shekhinah constitui a «complementaridade» do elemento masculino no mundo. Ela apresenta-se-nos, ao mesmo tempo, como a Filha, a Mãe e a Esposa.
A Filha… Mas, de fato, essa filha é-nos frequentemente apresentada como exilada, banida pelo seu próprio pai. Este «mito» de um «exílio da Shekhinah» corresponderá ao Tsimtsum, ao próprio «exílio» que Deus impôs a si próprio a fim de poder assegurar à sua criação independência, autonomia e liberdade?, ou, tratar-se-á sempre de uma espécie de separação existente no seio do próprio Deus, de um princípio Primeiro, à primeira vista unificado, mas transportando a virtualidade de uma dualidade masculina e feminina?, ou ainda, tratar-se-á do pecado de Adão e do pecado do homem? A verdade é que «qualquer coisa de Deus está ela própria isolada de Deus» e a «grande tarefa» do mundo será apressar a união de Deus com a sua bem-amada.
A Esposa… o tema das Núpcias é essencialmente bíblico. Encontramo-lo aqui aplicado a Deus e à sua Shekhinah, estando esta última muitas vezes identificada com Israel e com o povo bem-amado.
Mas, a um nível metafísico propriamente dito, trata-se realmente de um casamento, de um casamento entre aquilo que em Deus constitui o princípio masculino: «o Bendito seja Ele», e o princípio feminino: a Shekhinah ou Matrona. E o fruto desta união divina não é outro senão a Criação…
Disto resulta que o dualismo sexual se encontra inscrito na constituição do universo. Segundo o Zohar, «a forma sexual é a forma primordial da criação» (Zohar, III, 44 b, 151 b, 290 b). «Quando o Antigo quis formar todas as coisas, formou-as segundo o tipo macho-fêmea» (Ibid., III, 292). Também o Cântico dos Cânticos, o cântico do amor, é o cântico de toda a criação. «Há um segredo confiado à guarda de um sábio… somente: no meio de um imenso rochedo, muito secreto, encontra-se um palácio chamado o «Palácio do Amor». É a região onde os tesouros do rei estão acumulados; as suas marcas de amor estão lá» (cf. Zohar, II, 97 a).
A Mãe… e a Criada… uma criada que é ao mesmo tempo rainha e governanta do palácio do rei. Chamaram-lhe Matrona. Ela serve a divindade e governa as legiões de anjos, sendo muitas vezes comparada à Torá. O rei, que está fascinado por todas as qualidades que vê nela, pergunta a si próprio como a recompensar. E não encontra melhor forma de lhe testemunhar o seu amor e reconhecimento que fazendo-a dona absoluta da sua própria casa. Ele faz uma proclamação dirigida a todos os súbditos do seu reino: «Todos os poderes do rei estão confiados à Matrona.» Todos os poderes do rei? Isto não basta. Ele traz-lhe também todas as suas armas. Submete-lhe todos os seus oficiais e todos os seus servidores. Traz-lhe de presente joias, pedras preciosas e todas as riquezas do Tesouro Real (cf. Zohar, II, 50 b, 51 a).
Mas acontece que ela pode apresentar um rosto aterrador e traços quase demoníacos, como se não pudesse libertar-se de uma ambivalência mais ou menos inquietante. Perto da «Mãe das Alturas», habita sempre, como uma sombra por vezes ameaçadora, a «Mãe das Profundezas». Dá-se com estas alternâncias o mesmo que se dá com as «fases» que se sucedem à maneira de «lunações», talhando no firmamento a grinalda sucessiva dos quartos e dos círculos da claridade lunar.
É uma face noturna da Shekhinah que se mistura à «árvore da morte».
Reencontramos, sob outro ângulo, a ideia fundamental de um exílio da Shekhinah.
Este exílio sensibilizou numerosos cabalistas. Testemunham o fato os «Companheiros da Shekhinah», que à meia-noite caminhavam pelas ruas de Safed, lamentando-se: «Levantem-se, por amor de Deus, porque a Shekhinah está em chamas e Israel está em perigo!» (Abraham Halevi Beruchim). Exílio da Shekhinah que provém da invasão do pecado.