Trovão [KDNH]

Biblioteca de Nag Hammadi
Bronté ou Trovão (VI,2)

Uma personagem feminina, “Bronté” (ou “Trovão”, o Espírito perfeito, segundo o título), lança-se em monólogo que lembra as auto-apresentações da Sabedoria hipostasiada do Antigo Testamento (Pr 8) e mais amplamente as aretalogias de Ísis, nas quais a deusa expõe na primeira pessoa as maravilhas nela reveladas. Nossa heroína se apresenta assim desde a primeira página (p. 13,1-14,1):

O Trovão, o Intelecto completo. Eu fui emitida pela Força e vim até aqueles que pensam em mim e fui encontrada entre aqueles que me procuram. Contemplai-me, vós, que pensais em mim, e vós, ouvintes, escutai-me! Vós, que me esperáveis, aco-lhei-me em vossa casa e não me tireis de vosso olhar. E que nem vossa voz nem vossos ouvidos me odeiem! Não sejais ignorantes em nenhum lugar e em nenhum momento a meu respeito. Guardai-vos: não sejais ignorantes a meu respeito!

Pois eu sou a primeira e a última, eu sou a honrada e a desprezada, eu sou a prostituída e a venerável. Eu sou a mulher casada e a virgem, eu sou a mãe e a filha, eu sou os membros de minha mãe. Eu sou a estéril e aquela que tem inúmeros filhos, eu sou a mulher de numerosos casamentos e aquela que não teve marido. Eu sou a parturiente e aquela que não dá à luz; eu sou o alívio de minhas próprias dores (de parturiente), eu sou a noiva e o noivo e foi meu marido que me gerou.

Eu sou a mãe de meu pai e a irmã de meu marido. E ele é a minha descendência. Eu sou a escrava daquele que me preparou e sou a senhora de minha descendência.

Seu auto-retrato é construído com base em interpelações e alertas como este:

Vós, que me odiais, por que me amais? E por que odiais aqueles que me amam? Vós, que me negais, reconhecei-me! E vós, que me reconheceis, negai-me! Vós, que dizeis verdades sobre mim, menti a meu respeito. E vós, que mentis a meu respeito, dizei a verdade sobre mim. Vós, que me conheceis, ignorai-me! E que aqueles que não me conheceram possam me conhecer! (p. 14,15-25).

É sobretudo o aspecto antitético e paradoxal dessa litania que chama a atenção:

Eu sou a captada e a inapreensível. Eu sou a união e a dissolução. Eu sou a parada e a partida. Eu sou a descida e a subida até mim. Eu sou o julgamento e a absolvição. Eu sou sem pecado e a raiz do pecado está em mim. Eu sou o desejo do olhar e é em mim que está o domínio do coração. Eu sou a audição perceptível de todo o mundo e o discurso que ninguém pode captar. Eu sou muda que não fala e abundante é meu fluxo de palavras (p. 19,9-25).

Esse tipo de enunciado baseia-se na afirmação de extremos para expressar a totalidade insondável do ser. Quanto ao conteúdo em si mesmo, é difícil avaliar com exatidão as contribuições judaicas, cristãs ou gnósticas que ressoam no texto. A divindade que monologa neste texto é metamorfose gnóstica da Sabedoria judaica. O nome Bronté é aparentado ao mandeu Namrus, a “mãe da terra”, por sua vez aparentado ao demônio primordial feminino Nebroel ou Namreal do maniqueísmo, que, por seu turno, talvez remeta ao Nimrod bíblico (Gn 10,8-9). Fílon utiliza essa figura bíblica como símbolo da alma que caiu sob o poder das paixões. O título, portanto, nada diz sobre o conteúdo do tratado. Em contrapartida, parece mais certa a proximidade com Sofia decaída.