BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI — Três Estelas de Set
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
As três estelas de Set (VII,5)
Tradução de P. Claude, in BCNH, n.° 8, 1983.
Para este tratado, como para Zostriano e o Alógeno, Deus tem tripla natureza: ele é Existência, Vida e Espírito. O texto propõe três “estelas” para comemorar essa tripla natureza. Parece que a ideia da estela deriva de lenda judaica relativa à descendência de Set. Segundo Flávio Josefo, com efeito, Set foi o antepassado por meio do qual a primeira revelação de Deus, feita a Adão, foi transmitida ao mundo: o midraxe de Gênesis 4,25 e 5,3-8 faz dos descendentes de Set astrólogos que sabiam que haviam ocorrido dois cataclismos, um de fogo e outro de água; então, eles escreveram seus conhecimentos em duas estelas, uma de tijolo para escapar do fogo e outra de pedra para subtraí-la à água.
O fio central das três estelas é o seguinte: Dositeu, detentor da revelação de Set, descreve, sob a forma de prece hínica, a ascensão progressiva do extático através dos três níveis da natureza divina.
O fim do texto precisa que o caminho da ascensão é o mesmo da descida.
A primeira estela (p. 118,15-121,17) avança interessante evocação dos quatro tipos de seres que manifestam o Autógeno: o do mediador, o do mediador identificado com o fogo, o dos setianos primitivos e o dos setianos atualmente na deficiência:
Tu és misericórdia e tu és alguém de outro tipo1 — e ele está estabelecido sobre outro tipo. Agora, no entanto, tu és alguém de outro tipo e ele está estabelecido sobre outro tipo. “Tu és alguém de outro tipo” quer dizer “tu não és (semelhante); “tu és misericórdia” quer dizer “(tu) és eterno”; “tu estás estabelecido sobre um tipo” quer dizer “foste tu quem fez com que todos eles crescessem”; “por minha semente” quer dizer “és tu quem sabe que ele está estabelecido no criado”; “aqueles saíram de outras gerações” quer dizer “eles não são semelhantes” e “eles estão estabelecidos sobre outras gerações” quer dizer “eles estão estabelecidos na Vida” (p. 119,34-120,15).
A segunda estela (p. 121,20-124,14) é consagrada a Barbelo, que viu o Preexistente e gera os verdadeiros existentes. As p. 123,2-124,1 a exaltam de modo litânico:
E tu saíste em sua direção e, por seu intermédio, tu te dispersas (entre eles) e te tornas o Primeiro Revelado, Grande (Intelecto) macho. O Deus–Pai, ó Filho-Deus! ó Gerador de quantidade segundo a divisão de todos os verdadeiros existentes. Tu revelaste a todos uma palavra e tu manténs a todos sem colocá-los no mundo (e) em eternidade indestrutível. Através de ti chegou até nós a Salvação: de ti provém a Salvação, tu és Sabedoria de gnose. Tu és a Verdade: a Vida vem através de ti, de ti provém a Vida. O Intelecto vem através de ti, tu és o Intelecto, tu és o mundo da Verdade. Tu és a Tríplice Força, tu que és triplicemente duplo, na verdade tu és duplo três vezes. Ó Eão dos Eões, somente tu vês puramente os primeiros eternos e os incriados. E as primeiras divisões foram tais que tu te dividiste. Reúne-nos tal como foste reunido. Ensina-nos (o) que tu vês. Dá-nos força para que sejamos salvos para a vida eterna.
A terceira estela (p. 124,17-126,17) é consagrada à hipóstase suprema, o Incriado. Eis o início da estela, com a alegria do êxtase:
Nós nos rejubilamos! Nós nos rejubilamos! Nós nos rejubilamos! Nós vimos! Nós vimos! Nós vimos aquele que é o Preexistente real, que existe realmente, que é o Pré-eterno (p. 124,17-21).
O texto termina com uma exortação final (p. 127,21-26):
Sabei portanto, todos os vivos, que haveis chegado ao fim e, vós próprios, haveis recebido os Ilimitados em ensinamento. Maravilhai-vos da verdade que está neles e nesta revelação.
Este texto transmite sob forma litúrgica alguns elementos filosóficos do neoplatonismo e da exegese judaica inter-testamentária. Sua elaboração pode ser situada em torno de meados do século III. O próprio Dositeu, apresentado como intermediário da revelação, é conhecido como fundador algo lendário de corrente gnóstica, nas pegadas do “samaritano” Simão, o Mago.
O Códice VII conclui com admirável nota do escriba (p. 127,28-32), impregnada com o fervor desses humildes empreendedores da transmissão escrita:
Este livro é um bem paternal. Foi o filho quem o escreveu. Abençoa-me, Pai! Eu te abençoo, Pai, em paz! Amém.