Tratado da Gnose

Evágrio — GNOSIS OU A GNOSTIKÉ

Tradução da versão francesa de Antoine e Claire Guillaumont, feita por Antonio Carneiro

1 As práticas (vide praktike) compreenderão as razões práticas, mas as coisas gnósticas, os gnósticos as verão.

2 A prática, é aquele que somente adquiriu a impassibilidade da parte apaixonada de sua alma.

3 O gnóstico, é aquele que representa o papel do sal para os impuros e a luz para os puros.

4 A ciência que nos chega do exterior se esforça em fazer conhecer as matérias por intermédio da razão; mas aquela que vem para nós pela graça de Deus apresenta diretamente os objetos ao espírito, e, vendo-os,o intelecto acolhe suas razões. À primeira se opõe o erro, à segunda, a cólera e a irascibilidade e o que lhes segue.

5 Todas as virtudes abrem caminho para a rota do gnóstico, mas mais que todas para o domínio sobre a cólera. Aquele que, com efeito, alcançou a ciência e que se deixa levar facilmente pela cólera é semelhante à qualquer um que fura seus olhos com uma vareta de ferro.

6 Que gnóstico fique firme quando usa de condescendência, com medo de, inconscientemente, a condescendência se torne para ele um hábito; e que ele se esforce para praticar igual e constantemente todas as virtudes para que, nele também, elas se sucedam umas às outras, pois o intelecto é naturalmente traído por aquela que enfraqueceu.

7 O gnóstico se exercitará sempre para dar esmola e estará sempre prestes a ser benfeitor. E, se falta dinheiro, ele acionará o instrumento de sua alma. Pois é, de toda maneira, de sua natureza dar esmola, o que faltou às cinco virgens cujas lâmpadas se apagaram.

8 É vergonhoso para o gnóstico estar em um processo, seja como vítima ou autor de uma injustiça: se foi vítima disso, foi porque não a suportou, se está como autor disso é porque cometeu uma injustiça.

9 A ciência, quando conservada, ensina àquele que a compartilha como ela será salvaguardada e irá engrandecendo.

10 Possa o gnóstico, no momento quando ensina, estar exempto de cólera, de rancor, de tristeza, de sofrimentos corporais e de preocupações!

11 Evita, antes de ter se tornado perfeito, se encontrar com muitas pessoas , e de frequentá-las muito, com medo de que teu intelecto fique repleto de imaginações.

12 Tudo aquilo que, entre as coisas que dizem respeito da prática , da física ou da teologia, for útil a nossa salvação, é conveniente dizê-lo e fazê-lo até à morte. Mas, o que, entre elas, for indiferente não é necessário dizê-lo nem fazê-lo, por causa daqueles que se escandalizam facilmente.

13 Convém falar aos monges e aos seculares sobre a conduta direita/certa e de lhes explicar parcialmente aquelas doutrinas concernentes à física e à teologia « sem as quais ninguém verá o Senhor ».

14 Somente aos padres, àqueles que dentre eles são os melhores, responde, se te interrogam, sobre o que simbolizam os mistérios que são cumpridos por eles e que purificam o homem interior, os vasos que os recebem designando a parte apaixonada da alma e sua parte racional; sobre o que é sua mistura inseparável, o poder de cada uma dentre elas e o cumprimento das atividades de cada uma delas em vista de um único objetivo. E diga-lhes ainda de quem é a figura daquele que os cumpriu e quem são os que, com ele, repeliram os que foram obstáculo para uma conduta pura; e que, entre os seres vivos, uns tem memória, outros não a tem.

15 Aprenda a conhecer as razões e as leis das circunstâncias, dos gêneros de vida e das ocupações, para que possas facilmente dizer à cada um o que lhe é útil.

16 É preciso que tu tenhas o material para a explicação do que foi dito, e que tu abraces todas as coisas, mesmo se uma parte te escapes; é próprio do anjo, com efeito, que nada do que está sobre a terra lhe escape.

17 É preciso também conhecer as definições das coisas, sobretudo daquelas das virtudes e dos vícios, aí está , com efeito, a fonte da ciência e da ignorância, do reino dos céus e da tormenta.

18 É preciso procurar saber, sobre os assuntos das passagens alegóricas e das passagens literais, se dizem respeito da prática ou da física ou da teologia. Se disserem respeito da prática é preciso examinar se tratam da irascibilidade e do que nasceu dela, ou bem da concupiscência e do que seguiu dela, ou bem do intelecto e de seus movimentos. Se disserem respeito da física, é preciso ver se aprenderam alguma das doutrinas concernentes à natureza e qual foi. E, se for uma passagem alegórica concernente à teologia, é necessário, tanto quanto for possível, examinar se informa sobre a Trindade e se esta é vista simplesmente ou se ela é vista na Unidade. Mas, se não for nada disso, é uma simples contemplação, ou então aprenderam uma profecia.

19 É bom conhecer também os costumes da divina Escritura e de estabelecê-los, tanto quanto for possível, por meio de testemunhos.

20 É necessário saber ainda isto, que todo texto de carácter ético não comporta uma contemplação de carácter ético; como também, um texto concernente à natureza uma contemplação da natureza; mas, sendo de carácter ético comporta uma contemplação da natureza, e se tratando da natureza comporta uma contemplação ética, e o mesmo para a teologia.O que foi dito, com efeito, da fornicação e do adultério de Jerusalém, dos animais da terra seca e das águas, e dos pássaros, os puros e os impuros, do sol que « se levanta, se deita e retorna para seu lugar », se relaciona em primeiro lugar à teologia, em segundo lugar à ética, em terceiro lugar à física. Ora, o primeiro texto dizia respeito à ética e os dois outros à física.

21 Tu não farás alegorias com as palavras dos personagens censuráveis e tu aí nada irás procurar de espiritual, a menos que Deus tenha agido em virtude da Economia (vide oikonomia), como fez com Balaão e com Caifás, a fim de que um predissesse o nascimento e o outro a morte de nosso Salvador.

22 É preciso que o gnóstico não seja nem sombra, nem de um início difícil. Aquele, com efeito, é de alguém que ignora as razões dos seres, este é de alguém que não quer « que todos os homens sejam salvos e consigam fazer algo para o conhecimento da verdade ».

23 É necessário às vezes fingir ignorância, porque aqueles que interrogam não são dignos de entender. E tu serás autêntico, uma vez que estás ligado à um corpo e que tu não tens agora o conhecimento integral das coisas.

24 Preserva-te de falar, visando o ganho ou bem-estar ou uma glória passageira, sobre qualquer coisa que não deva ser revelada, por medo que sejas rejeitado fora do círculo sagrado, vendendo, tu também, no Templo, pintainhos de pombos.

25 Aqueles que discutem sem ter a ciência, é necessário de os fazer se aproximar da verdade à partir não do fim, mas do começo; e aos jovens é necessário nada dizer sobre as coisa gnósticas nem lhes permitir ter acesso aos livros sagrados deste jeito, pois podem não resistir às quedas que provocam esta contemplação. É porque, àqueles que lutaram contra as paixões, é necessário dizer não palavras de paz, mas como triunfarão contra seus adversários; com efeito, como diz o Eclesiastes, « não há delegação em dia de guerra ». Então, aqueles que lutaram contra as paixões e escrutaram as razões dos corporais e dos incorporais se assemelham aos doentes que discutem sobre a saúde. Mas, é quando a alma está agitada pelas paixões que convém à esses provar doces raios de mel.

SEGUE: II