Lutero

Lutero, Martinho (1483-1546)

Nascido em Eisleben, Saxônia, no dia 10 de novembro de 1483, morreu na mesma cidade em 18 de fevereiro de 1546. De família de camponeses, conseguiu entretanto estudar filosofia na Universidade de Erfurt, em um ambiente impregnado de ockhamismo. As doutrinas de Ockham e de seus discípulos Gabriel Biel e Pierre d’Ailly empolgaram, desde então, Lutero, que não ocultará dizer: “Sum occamicae factionis, Occam magister meus dilectus”. Tudo isso, mais a leitura posterior do místico Tauler, por quem Lutero sentia profunda admiração e cujas obras utilizava e anotava pessoalmente, influenciarão decisivamente o reformador.

Em 1505, conseguido o doutorado, entrou no convento dos ermitões de Santo Agostinho de Erfurt. Ordenou-se sacerdote dois anos depois e foi transferido para Wittenberg, onde ensinou primeiro ética e depois teologia e exegese, comentando sucessivamente os salmos e diversas Cartas de São Paulo. Foi o período de 1512-1518 o que marcou melhor sua evolução interior. Começou explicando os Salmos (1513-1515), a Carta aos Romanos (1515-1516), Gálatas (1517) e Hebreus (1518). Simultaneamente, Lutero aprofundou-se no conhecimento do ockhamismo, como na mística alemã, principalmente de Tauler, tirando daí uma ideia da nulidade absoluta do homem diante de Deus e do abandono passivo nele. Lutero sofreu nestes anos um estado de profunda inquietude, com temores de que não se poderia libertar do pecado e de que pertencia ao número dos condenados. Isso explica a leitura e estudo destes livros, assim como sua nova paixão pela leitura dos tratados antipelagianos de Santo Agostinho e de São Paulo, os dois mestres a quem sempre se agarrara. Fechado nessas leituras, encontrou na “experiência da torre” a solução para seu problema interior. Numa iluminação interior, Lutero intuiu o que significava a justiça de Deus: o ato pelo qual o Senhor cobre os pecados dos que se abandonam a ele mediante a . Tal é a justiça de Deus de que se fala na Carta aos Romanos: não a justiça reivindicatória, mas a justiça salvífica, isto é, a graça com a qual Deus nos santifica (Rm 1,17).

— Essa iluminação é central no sistema teológico luterano e chave de sua atuação e conduta posterior. Ao reconhecer na graça um dom não só absolutamente gratuito, mas também independente por completo de nossa colaboração, dentro do quadro geral da arbitrariedade divina própria do sistema ockhamista, Lutero encontrava um desabafo para suas ânsias: abandonar-se à ação salvífica de Deus era suficiente para saber-se e sentir-se salvo: sola Jides.

— Desse primeiro princípio surgiram outros três que resumem todo o luteranismo. 1) Sola Scriptura. A Escritura não só contém materialmente a totalidade da divina Revelação, mas também não tem necessidade de ser iluminada nem esclarecida pela tradição. E suficiente por si mesma e por si só para garantir à Igreja a certeza sobre todas as verdades reveladas. Ficam excluídas assim a tradição e a intervenção da Igrej a por meio de seu magistério, e abre-se a porta para o livre exame. 2) Justiça imputada ou puramente atribuída, não inerente. A natureza humana ficou, após o pecado original, irremediavelmente corrompida; o homem perdeu sua liberdade e todas as suas obras são necessariamente pecado. Deus, contudo, sem apagar os pecados e sem renovar interiormente quem acredita nele e nele confia, aplica-lhe os méritos e a santidade de Cristo, considera-o como se fosse interiormente justo e renovado; o homem é, portanto, simultaneamente justo e pecador. Embora se sinta pecador e não realize obras boas, basta abandonar-se no Senhor e em sua misericórdia, que de per si atua no homem. 3) O terceiro princípio é a repulsa da Igreja hierárquica e, naturalmente, da Igreja histórica que lhe foi dado viver, a) “A Igreja é concebida como continuidade espiritual de almas unidas numa só fé”, “a união de todos os crentes em Cristo sobre a terra”, uma união espiritual que basta para formar a Igreja, b) A Igreja é definida pela relação fundamental e direta do Senhor com cada um dos fiéis por cima e à margem de qualquer tipo de mediação: não há diferença essencial entre o sacerdócio dos simples fiéis e o do papa. c) A negação do primado papal e da Igreja como instituição hierárquica visível são corolários necessários desta mesma concepção da Igreja que faz Lutero, d) A negação da Missa como sacrifício é também corolário da doutrina anterior. Com o agravante de que “a missa é o mais grave e horrível delito entre todas as formas conhecidas de idolatria”, e) Outros corolários são igualmente a redução dos sacramentos, a liberdade de culto e disciplina, a repulsa e repúdio absoluto às indulgências e a todas as formas de idolatria e de corrupção da Igreja do Renascimento.

— Como se pode apreciar, a Reforma de Lutero começara clamando por um “cristianismo mais puro” proclamado por todos os reformadores nos dois últimos séculos. “Essa atitude constitui a originalidade da doutrina e da obra de Lutero. Indubitavelmente, todos os elementos de tal doutrina são medievais, e não apresentam nenhuma originalidade. Esta se apoia, entretanto, em ter feito valer o retorno ao Evangelho como instrumento de uma palingenesia (eterno retorno) religiosa, e em ter feito de tal retorno uma força de destruição e renovação. A Reforma uniu-se ao Renascimento, precisamente em seu motivo central, em seu esforço de voltar às origens. E, como o Renascimento, tendeu a compreender os homens nas obras da vida, afastando-os das cerimônias e do culto externo.

— Toda a história posterior, desde a exposição das 95 teses em 1517 até a sua morte ocorrida em 1546, formou a trama de sua vida. Um homem de autêntica e profunda religiosidade, tendência ao subjetivismo, ao autoritarismo, e à violência: traços essenciais do reformador que explicam em parte o enorme influxo que exerceu sobre o espírito germânico e principalmente a cultura europeia. Sua herança e legado ficaram nos sermões, nas palestras, nas cartas, folhetos e obras de grande porte como seus dois Catecismos — o maior e o menor — , suas obras polêmicas: De servo arbitrio, suas arengas, suas fórmulas da . E sua tradução da Bíblia para o alemão, monumento da língua germânica.

BIBLIOGRAFIA: Obras: Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar, 1883s.; Obras de Martin Lutero. Ediciones laAurora, Buenos Aires, 10 vols.; Ricardo Garcia Villoslada, Martin Lutero (BAC maior) 21976, 2 vols.; J. Lortz, Historia de la Reforma. Madrid 1963,2 vols.; J. L. L. Aranguren, El protestantismo y la moral. Madrid 1954; Catolicismo y protestantismo como formas de existencia. Madrid 1957; J. Atkinson, Lutero y el nacimiento del protestantismo. Madrid 1971; Lutero (Biblioteca grandes personagens). Ed. de Pedro R. Santidrián. Madrid 1984. (Santidrián)