Testemunho de Verdade [KDNH]

BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
O Testemunho de Verdade (IX,3)

Tratado fragmentário (45% do texto foram perdidos), fortemente polêmico contra a Igreja ortodoxa, mas também contra os valentinianos e os basilidianos, o Testemunho de Verdade, assim chamado com base em seu conteúdo, mas que também poderíamos chamar de “O Verdadeiro Testemunho”, é obra de alguém que conhecia bem os textos bíblicos, dos quais se serve para condenar a Grande Igreja e as outras correntes gnósticas e para pregar a renúncia a esse mundo radical e absoluto. Uma tese enunciada na p. 45,6 (“Este é, em consequência, o testemunho da verdade: quando o homem se conhecer a si mesmo e a Deus, que está acima da Verdade, ele estará salvo e será coroado com a coroa imperecível”) permite dividir o texto em duas partes: p. 29,6-45,6: Uma homilia, que desenvolve temas espirituais bastante orientados contra a ortodoxia, como a Verdade ao invés da Lei, a gnose ao invés do martírio e da ressurreição, a virgindade absoluta etc. Assim, por exemplo, na p. 29,6-30,18:

Mas eu quero dirigir-me àqueles que sabem escutar, não com os ouvidos carnais, mas com os ouvidos do coração. Com efeito, muitos procuraram a Verdade, mas não puderam encontrá-la, pois o velho fermento dos fariseus e escribas os prendia. O fermento, na realidade, é o desejo, que se tornou eficaz pelos trâmites dos anjos, dos demônios e dos astros. Os fariseus e os escribas pertencem aos Arcontes, que exercem o poder pela Lei. Pois ninguém (colocado) sob a Lei poderá erguer os olhos para a Verdade, porque não se pode servir (ao mesmo tempo a) dois senhores. Com efeito, a mácula que (vem) da lei é evidente; em contrapartida, a virgindade pertence à Luz. Por um lado, a Lei ordena casar-se, e se multiplicar como a areia do mar. Por outro lado, a paixão, doce para aqueles que agem assim, prende as almas dos gerados neste lugar, eles que maculam e são maculados a fim de que, por meio deles, se cumpra a Lei. Assim, é evidente que eles ajudam o mundo (cosmos) e que eles mantêm (as almas) afastadas da Luz. Desse modo, não lhes é mais possível escapar aos Arcontes das trevas antes de terem pago o último quadrante.

p. 45,7-74,30: Polêmica bastante original a partir do texto bíblico. Depois de ter transmitido o relato da queda original, o autor pergunta, à p 47,14-48,1:

Mas que espécie de Deus é esse? Primeiro, enciuma-se de Adão por ter comido da árvore do conhecimento. Depois, ele diz: “Adão, onde estás?” Esse Deus não tem presciência, isto é, ele não o sabia desde o princípio. E ele diz ainda: “Expulsemo-lo deste lugar, para que ele não coma da árvore da vida e viva eternamente”. Está claro que ele apresentou-se a si mesmo como invejoso. Então, que espécie de Deus é esse?

Segundo esse texto, a serpente, encarnada mais adiante por Cristo, é a reveladora da verdadeira gnose, ao passo que o Deus do Antigo Testamento é demônio malfeitor. Podemos constatar que essa exegese visa a denunciar o Deus da Bíblia em benefício de Cristo, mas de um Cristo bem particular:

Mas o Filho do homem saiu do Imperecível, estranho à mácula. Ele veio ao mundo perto do Jordão e imediatamente o Jordão passou a fluir para trás. E João deu testemunho da (descida) de Jesus, pois ele é o único a ter visto a Potestade que veio por cima do Jordão: com efeito, ele soube que o reino da procriação carnal chegava ao seu fim. O rio Jordão é a força do corpo, ou seja, os órgãos do prazer. A água do Jordão é o desejo da relação sexual. João é o arconte do seio materno. E eis o que o Filho do Homem nos revela: é conveniente que vós recebais a palavra (logos) de Verdade (p. 30,18-31,5).

Assim, vindo por cima do Jordão, sem tocá-lo, justamente para não se macular, Jesus revoga a dominação carnal que aprisionava os eleitos.