Termo “encarnação” [AOCG]

Antonio OrbeCristologia Gnóstica

O termo encarnação desperta hoje noções muito específicas. Entre os gnósticos, isso se presta a mal-entendidos. Aplicado às almas ou aos espíritos que vieram ao mundo, denotava a fase final: o revestimento da carne sensível no ventre materno. A encarnação foi precedida pela assunção de propriedades incorpóreas (e até mesmo substâncias) nos céus planetários.

Ninguém viu qualquer mistério no motivo pelo qual o indivíduo “espiritual” assumiu pela primeira vez uma alma racional; depois, outra irracional e, por fim, o corpo visível.

Na sua aplicação ao Logos, Filho de Deus, a krasis (ou assunção) sucessiva de três ou mais substâncias (pneuma, psique, alma irracional, carne), ou o seu aparecimento como homem visível, apresentava vários aspectos. Alguns, misteriosos. Outros, além de todo mistério.

A comunhão do Filho unigênito com a espécie humana não criou problemas do seu lado divino. O Unigênito era manifestado pessoalmente, de acordo com suas perfeições, numa infinidade de formas. E, sem abandonar a sua natureza divina, poderia assumir – em krasis – todos aqueles a que se estendia a sua atividade salvífica, por missão pessoal. Onde há σύγκρασις, as substâncias e qualidades adequadas perseveram sem confusão. O problema da imutabilidade absoluta de Deus afetou apenas o Pai. O Filho, pela sua natureza pessoal, foi chamado – entre gnósticos e eclesiásticos – à parusia e, sem abandonar o seio de Deus, teve que unir-se ao homem para habitar o mundo sensível. A salvo, é claro, de sua pessoa e substância divinas.

A objeção veio do lado humano. Segundo alguns (valentinianos), o corpo e o homem hílico (= irracional) não eram capazes de “saúde” (resp. incorrupção). Antes, portanto, de incorrer na contradição de um salvador condenado a perder o que assume, era aconselhável harmonizar a eficácia salvífica do Filho com o seu aparecimento num corpo visível. Por quais caminhos?

Aí está, para certos gnósticos, o mistério da encarnação: na formação milagrosa – a partir de uma substância que não é nem visível nem material – de um corpo visível, passível, mortal (aparentemente material). Para justificar o mistério vem a exegese de Lucas 1,35: relativa ao substrato imaterial da carne de Jesus (“o espírito de Deus”) e sua demiurgia em virtude do Altíssimo.

Mas nem todos ficaram impressionados com a objeção anterior. Mesmo que o Filho assumisse um corpo de essência material, corruptível, incapaz de uma “saúde” tão elevada quanto a da psique e do pneuma, não poderia ele, por meio dele, conceder ao universo hílico a σωτηρία, da qual ele é capaz na apocatástase? Mas como utilizar o corpo material para sua missão salvadora universal? A realidade dos seus milagres físicos e materiais foi imposta. Seus ensinamentos sensíveis, sua morte corporal… também. Solução, também com recurso a Lc 1.35. O anjo invoca o mistério do Jordão. Jesus receberá o Espírito de Deus sobre a sua carne — como um “corpo divino” —; e a Virtude do Todo-Poderoso reformará, segundo ele, o corpo recebido de Maria para lhe permitir realizar um exercício “salvífico” e convertê-lo (secundum carnem) em Salvador do mundo. Para Jesus, o batismo no Espírito era a encarnação do Unigênito. Não porque desde a mensagem do anjo Jesus não fosse pessoalmente o Filho de Deus, mas porque até o fenômeno do Jordão ele não se tornou tão fisicamente em sua natureza mais baixa.

Segundo isto, tanto no mistério do ventre virginal de Maria como no das águas do Jordão, o centro da atenção gnóstica é a natureza do corpo de Jesus, que: a) para alguns (valentinianos) adquire, por milagre, qualidades físicas materiais provenientes de uma essência imaterial; b) para outros, adquire (no Jordão) qualidades físicas divinas a partir de uma essência material.

A aplicação de Lucas 1:35 a Nazaré e ao Jordão explica a confusão de muitos eclesiásticos.

Além da exegese lucana, seria oportuno mencionar o caráter polivalente de 1,14 na sua aplicação às etapas do Filho, às suas diversas emissões. O mal-entendido não está oculto no Logos, mas na carne (resp. “tornar-se carne”), que, além do corpo sensível, pode indicar — numa linha estoica — simples ousia, natura ou forma circunscrita. “O Logos tornou-se carne”, onde quer que assumisse uma forma finita — por exemplo, em sua própria geração a Patre —; ou uma substância ou natureza criada: na Ogdoada, na Hebdomada, no ventre virginal.

O segundo século ignorou muitas das preocupações atuais; v.g.: a “imutabilidade” da Palavra e a sua comunhão pessoal, no espaço e no tempo, com o homem. Nem mesmo os eclesiásticos o formularam na exegese da encarnação. Nem como Logos nem como intelecto do Pai o Filho possuía a imutabilidade do Theos Agnostos. Além do mais, ele pessoalmente teve que mudar de estado e, sem prejuízo de sua natureza e propriedades divinas, submeter-se às vicissitudes do homem. A krasis entre o Filho de Deus e o homem (ou homens) assumido salvou, além de toda confusão, a coexistência das propriedades divinas e humanas em Jesus.

Igualmente inoportuno foi o problema da união hipostática de duas substâncias na pessoa do Filho. Através da krasis, tal união estendeu-se a um número infinito de casos além de qualquer mistério; especialmente entre aqueles que, como os gnósticos, introduziram uma diversidade de substâncias humanas em cada um dos indivíduos psíquicos e pneumáticos.

O próprio mistério da concepção virginal era em si independente daquele da Encarnação, embora representasse a sua premissa mais óbvia. O anúncio do anjo (Lc 1,35) ou referia-se ao mistério do Jordão, ou – dentro do de Nazaré – tentava salvar a santidade do organismo (sensível) formado no ventre e surgido fora da Virgem. Santidade que, independentemente da sua condição puríssima (sem pecado), implicava uma disposição física única para a obra do Filho de Deus.