GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
A “THEOLOGIA DEUTSCH”
VIDA
Não pareceria então que a vida do justo devesse ser serena e feliz, mas que devesse sempre possuir uma secreta angústia; a menos que não olhe os acontecimentos humanos com o olhar de quem vê — a despeito de toda a aparência contrária — a obra de uma Providência onipotente. Mas o francfortês, como Eckhart, ignora este otimismo abstrato e amoral. É verdade que para ele o justo encontra já nesta terra o reino dos céus e a vida eterna, pois o Paraíso é tudo o que existe de bom para a vontade boa, enquanto que o Inferno não é um lugar determinado de dores ultraterrenas mas “vontade pessoal”. E no entanto, não é um caprichoso paradoxo afirmar que esta vida é, justamente em virtude do que foi dito, um inferno de angústia para os justos e um paraíso de inconsciência para os maus. De fato, o justo, ainda que não sofra pelas misérias materiais do mundo, não pode deixar de sofrer pelos pecados dos homens, não pode deixar de angustiar-se diante das atrozes maldades, das injustiças, das perversidades humanas: sofre porque sua alma é nobre e está sedenta de bem e de ordem moral. As culpas alheias não o contaminam, mas o deprimem; o júbilo de sua conquistada unidade interior é um júbilo amargo que empana a claridade da Luz divina e onipresente. E ainda que se diga que esta amargura divina e a reconheçamos como positivo valor moral, isto não impede que a vida humana esteja intimamente desgarrada por um conflito essencial. Apesar da afirmada unidade do Ser, o vivo sentido moral impede toda a conclusão panteísta.
Este sofrimento moral está ausente no mau, que deixaria de ser tal. se o possuísse. Como todos os místicos sustentam com insistência, um ato é imoral na medida em que é afastamento do Ser que é Bem e acarreta consigo sua infernal angústia; mas a dor que sofre o mau, enquanto pecador no ato, não é a nobre indignação de uma consciência imaculada, mas um sofrimento passageiro e inconsciente, como a má ação que realiza e que é não-ser, nada. O justo sofre pelos pecados que não comete; o mau os realiza com indiferença sem compreender o que significa a inquietude que o agita. O mundo terreno está muito longe de ser harmônica teofania se o homem se dirige a partir do seu refinado isolamento egocêntrico para o torvelinho da existência. E seguramente nesta contradição insanável da vida pensava o francfortês quando, atenuando a visão otimista eckhartiana do Uno e algumas de suas próprias expressões, sentia a necessidade de completar a felicidade terrena do homem divinizado com a imperturbável beatitude ultraterrena, declarando com estas palavras o destino do justo. “Aquele que entra no inferno aqui no tempo entrará depois do tempo no eterno reino dos céus”.
Ainda que totalmente imbuída de um ansioso desejo de salvação moral, a Teologia revela claramente as exigências do conhecimento intelectual que desde as premissas socráticas chega ao misticismo especulativo de Meister Eckhart. Por baixo das normas morais podemos observar não um íntimo fervor místico vinculado com dogmas e com crenças positivas — como em Suso — senão a clareza de um raciocínio vigilante de si mesmo que, enquanto se eleva para um conhecimento cada vez mais universal, libera progressivamente a vontade das paixões e dos egoísmos. Só o pensamento é liberador. “O que é livre não é de ninguém e quem o torna seu, faz algo injusto. Pois bem, entre todas as coisas livres, nenhuma é tão livre como a Vontade e quem a torna sua e não a deixa em sua nobre liberdade e em sua nobre ação, faz uma coisa muito injusta. O homem que não se apodera da Vontade, senão que a deixa em sua nobre liberdade, faz bem: é o homem verdadeiramente livre e puro, de quem Cristo disse: a Verdade vos fará livres. Acima das leis e das convenções humanas, acima do mundo e dos interesses mundanos, a vontade humana é livre porque é, no fundo, a própria vontade do Absoluto e, portanto, só é livre se, elevando-se acima das coisas particulares e individuais, se reúne consigo mesma. Liberdade e Necessidade coincidem. Apesar das inevitáveis discrepâncias, a ética de Spinoza está anunciada aqui em sua fundamental inspiração.
Ainda que o Livrinho da Vida Perfeita despoje a mística eckhartiana de seus problemas mais difíceis e perigosos — como por exemplo aqueles do grunt der sêle, da inteligência incriada, da nulidade da criatura,da analogia entis, etc. — conserva e transmite sua autêntica mensagem ético-religiosa. Os dogmas fundamentais do catolicismo — o pecado original, a encarnação de Cristo, o Inferno e o Paraíso — não se calam nem se combatem, senão que são repensados com independência de toda autoridade teológica, em função do essencial interesse moral. Lutero que devia a João von Staupitz o conhecimento dos escritores místicos do século XIV alemão — viu nas reticências,cautelas dogmáticas ou interpretações morais da Teologia alemã algo que nela de nenhum modo havia, isto é, a hostilidade no tocante à prática carismática da Igreja romana. A pequena obra do francfortês o liberou da infantil crença nas obras exteriores e ao mesmo tempo das doutrinas do Escolasticismo intelectualista e racionalista. Com esta pequena obra, segundo Freytag, teriam terminado seus terrores e temores religiosos e sua alma se teria aberto à luz da genuína fé cristã. Com efeito, Lutero havia chamado “alemã” a mística da obra descoberta por ele com a precisa intenção de opô-la à teologia latina: aquela devia revelar a justificação mediante a fé e a relação imediata da alma com Deus, enquanto que esta significaria a escravidão do espírito com relação às obras exteriores e ao despotismo do Papa-Anticristo. A obra se transformava em suas mãos em um estandarte de luta que deveria ter conduzido as almas puras à destruição da Igreja romana e à criação de uma Igreja invisível; mas quando a sua rebelião sincera seguiu a “vontade pessoal”, quando ao genuíno amor da vida interior se sucederam as transações com o mundo e o afã do proselitismo, a Teologia alemã, com a qual Lutero se havia anunciado pela primeira vez em sua pátria, devia ter-lhe parecido um simples sonho de juventude, demasiado nobre e elevado para poder permanecer entre os tumultos e os ódios da vida, inspirando concretos programas de luta e de reconstrução política e religiosa. Na realidade, o Livrinho da vida perfeita foi esquecido e os terrores não cessaram jamais. Lutero, que queria constituir a nova Igreja visível e fundar seu dogmatismo, não podia deixar de esquecê-lo: se bem que o ideal de perfeição proposto por Lutero, por um lado diminuía o valor das obras exteriores e punha o homem em contato direto com Deus, por outro lado não assinalava a ação externa como um mal satânico — instaurando assim um torpe dualismo, contrário à visão teocêntrica de Eckhart — nem exigia novos conflitos em nome de perspectivas dogmáticas pessoais.
A parte e acima das confissões eclesiásticas e das rígidas formulações dogmáticas, o livro foi apreciado por todos os que se propõem pertencer à invisível igreja do Espírito santo: pelos anabatistas, pelo anti-escriturário Sebastian Franck, por Valentin Weigel e por todos aqueles que, como Schopenhauer, veem na “natureza” e no “mundo” esta fragmentação que afastado Uno e que, não aceitando passivamente a historicidade cotidiana, se esforçam para conquistar sua própria liberdade interior no conhecimento e na caridade.