Teologia Germânica União

GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
A “THEOLOGIA DEUTSCH”
UNIÃO COM DEUS
A respeito da lei e das práticas, os homens podem dividir-se em quatro categorias: a primeira é obsequente, não por amor a Deus ou à outra coisa, mas apenas por obrigação. A segunda o faz por uma recompensa, e são estes os homens que não conhecem nada melhor e imaginam que com estes meios pode-se conquistar o reino dos céus. A terceira é a dos espíritos falsos e perversos que se jactam de ser perfeitos e de não ter necessidade de práticas, das quais zombam. A quarta pertence aos iluminados pela luz verdadeira, que não praticam seu dever por recompensa mas tudo o fazem por amor, pois não se deve esquecer que os mandamentos, os conselhos e as ensinanças de Deus se referem apenas ao homem interior, para que este possa unir-se a Deus.

Claro, a meta suprema é a união com Deus; mas para o francfortês, como para Eckhart, a união não deve ser entendida como um determinado sentimento estático e como uma firme negação da multiplicidade e do caráter vital e concreto da existência, pois também o múltiplo é teofania e necessária explicação do Uno e, se o ato egoísta da alma não o arranca ao Todo e o torna próprio, é realidade boa no Bem. Portanto a união, mais que um alheamento a respeito da inesgotável riqueza do mundo, dos acontecimentos cotidianos, dos afetos e das dores da existência, é uma reabilitação do concreto no próprio ato em que a alma, encontrando novamente em si o Uno, reduz a si o múltiplo e o insere no Uno. Visto que todos os seres são essencialmente idênticos ao Ser perfeito e todos os bens um só bem naquele e sem o Único nada pode existir; já que Deus é o Uno e deve ser o Uno mas também é o Todo e deve ser o Todo de modo que aquele para quem o Todo não é o Uno e o Uno não é o Todo não encontra satisfação completa em Deus; visto que todas as coisas são boas em virtude do Ser, se deduz então, que as coisas não têm sentido senão na alma que se reconquistou a si mesma no Uno-Todo e sabe encontrar em todas as coisas, mesmo nas menores, a presença do Infinito e do Eterno. Também para a Teologia alemã “não ser contido no máximo, ser contido no mínimo, é divino”.

A união não é mais que estar unido verdadeira e sinceramente à Vontade, una e eterna, de Deus, sem nenhuma limitação, pura e completamente; ou também ser absolutamente sem vontade, de modo que a vontade criada reflua na Vontade eterna e nesta se dilua e desapareça de maneira que a Vontade eterna seja a única que queira tudo o que se faz e o que não se faz. Quando a união se realizou e se transformou em uma verdadeira posse do ser, o homem interior permanece imóvel nela, enquanto que o homem exterior se movimenta daqui para lá, de um objeto a outro, mas sem perturbar a serenidade que a consciência adquiriu. Nesta união Deus e o homem formam” uma só realidade, uma só obra e uma só vida; o homem divinizado está possuído e tomado pelo espírito de Deus que o domina e fala e age através de sua ação e de sua palavra. Sua perfeição é inefável como Deus; quem quiser conhecê-la deve transformar-se nela e aquele que a possui não pode conhecê-la nem descobri-la com palavras ou conceitos, senão tão somente revelar-se através das obras. Destes homens fala São Paulo quando diz: “Aqueles que estão regidos e guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus e não estão submetidos à lei”; a estes Cristo lhes disse: “Não sois vós que falais senão que é o Espírito do Pai que fala em vós:’Neles o Uno atua ininterruptamente sem nenhuma distinção do “eu” e do “meu”; aqui está o verdadeiro Cristo e não em outra parte.

Portanto no homem divinizado não é a criatura quem ama, senão o próprio Deus, que é o Uno, através da criatura. Visto que na verdadeira Luz e no verdadeiro Amor não há lugar para um “eu” nem para um “meu”, para um “tu” nem para um “teu”, nem para outras distinções similares, senão que todo bem é em essência uma só coisa no Único, o amor não se dirige a um “eu” ou a um “tu”, mas unicamente ao Único, que não é esta ou aquela coisa, senão que está acima de todas as coisas. No Único todo o bem é amado como único bem, exatamente como se diz: Tudo no Uno e o Uno no Todo, tudo desde o Uno, no Uno e pelo Uno. E visto que quem possui esta luz e este amor deve amar todo bem no Uno e como o Uno, e o Uno em todas as coisas como Uno-Todo, assim deve amar também tudo ó que com direito leva o nome de bem, quer dizer, a Virtude, a Ordem, a Razão, a Justiça, a Verdade. E quem não ama no Uno e por amor do Uno, não ama a Deus. Os afetos humanos não se condenam apenas por uma espécie de pessimismo que nega os direitos da vida, senão que se consagram dentro de um Amor mais amplo que os purifica de sua anulação e de sua amargura porque os inclui em uma visão intelectual infinita que acolhe em si uma série de tempos e de acontecimentos como articulações de seu ritmo incessante e transforma o sujeito empiricamente individualizado em Sujeito puro e em espectador sereno de um Universo espiritual renovado, que em sua consciência cósmica, heroicamente purificada, sente que possui a própria plenitude da vida e que é, como dirá Schopenhauer, o portador do mundo.

Contudo o homem divinizado não é diferente nem apático diante dos males da vida. Se sente alegria diante de tudo o que é bem,ordem e justiça, aceita também a aflição e a dor por tudo o que, no mundo, se opõe ao Uno, ao Amor e à Verdade. Este sofrimento pertence à vontade do homem; mas sabemos que a vontade do homem divinizado não lhe pertence, e sim a Deus. Por outro lado, é absurdo admitir em Deus a dor e o desconcerto. Portanto, se Deus se perturba por causa dos pecados humanos, isto pode acontecer unicamente na medida em que Deus é Homem, isto é, no homem divinizado. Deus sofre;no sofrimento das almas boas, pelos pecados do mundo, e o sofrimento dos justos ante as injustiças e as perversidades é divino. A dor e a pena que nascem pelo pecado devem durar no homem divinizado até a morte corporal, mesmo que tivesse que viver até o dia do juízo final. Daqui deriva a angústia secreta de Cristo (da que ninguém fala e ninguém tem conhecimento mais do que Cristo: e por isso se diz “secreta”), que é verdadeiramente um estado divino que ele quer ter e vê com gosto no homem. A apatia estoica é desumana e anti-divina: não se pode deixar de alegrar-se do bem e,portanto,esta alegria provém de Deus e é de Deus; não se pode deixar de angustiar-se pelo pecado e,portanto, a dor provém de Deus e está em Deus. De outra alegria e de outra dor não se pode falar no homem divinizado: qualquer outro sofrimento que derive de misérias terrenas ou de enfermidades, ou de pobreza, não tem nenhum sentido para o homem que vê o Uno no Todo. A única verdadeira angústia é a angústia moral.