Tanquerey — Compêndio de Teologia Ascética e Mística
§ III. A ira
A ira é uma aberração daquele sentimento instintivo que nos leva a defender-nos, quando somos atacados, repelindo a força com força. Diremos: 1. a sua natureza; 2 a sua malícia; 3. os seus remédios.
I. Natureza da ira.
853. Há ira-paixão e ira-sentimento.
1. A ira, considerada como paixão, é uma necessidade violenta de reação, determinada por um sofrimento ou contrariedade física ou moral. Esta contrariedade desencadeia uma emoção violenta que distende as forças no intuito de vencer a dificuldade: sentem-se então impulsos de descarregar a cólera sobre pessoas, animais ou coisas.
Distinguem-se duas formas principais: a cólera rubra ou expansiva nos fortes, e a cólera branca ou pálida, ou espasmódica nos fracos. Na primeira, bate o coração com violência e impele o sangue para a periferia: acelera-se a respiração, enrubesce-se o rosto, incha o pescoço, desenham-se as veias sob a pele; eriçam-se os cabelos, faísca o olhar, saltam das órbitas as pupilas, dilatam-se as narinas, enrouquece a voz, entrecortada, exuberante. Aumenta a força muscular, todo o corpo se distende pra a luta, e o gesto irresistível fere, quebranta ou afasta violentamente o obstáculo. — Na cólera branca, contrai-se o coração, torna-se a respiração difícil, cobre-se a face de palidez extrema, goteja a fronte suor frio, cerram-se as maxilas, guarda-se um silêncio impressionante; mas a agitação, contida no interior, acaba por estalar brutalmente, descarregando-se por meio de golpes violentos.
854. 2. A ira, considerada como sentimento, é um desejo ardente de repelir e castigar um agressor.
A) Há uma cólera legítima, uma santa indignação, que não é senão o desejo ardente, mas racional, de infligir aos criminosos o justo castigo. Foi assim que Cristo Senhor Nosso entrou em justa cólera contra os vendilhões que com o seu tráfico contaminavam a casa de seu Pai; o sumo sacerdote Heli, pelo contrário, foi severamente censurado por não ter reprimido o mau procedimento de seus filhos.
Para ser legítima, a cólera tem que ser: a) justa no seu objeto, não tendo em vista senão castigar a quem o merece e na medida em que o merece; b) moderada no seu exercício, não indo mais longe do que reclama a ofensa cometida e seguindo a ordem que demanda a justiça; c) caritativa na sua intenção, não se deixando arrastar a sentimentos de ódio, não procurando senão a restauração da ordem e a emenda do culpado. Qualquer destas condições que falte, haverá excesso repreensível. E sobretudo nos superiores e pais que a cólera é legítima; mas os simples cidadãos têm por vezes direito e dever de se deixarem inflamar de cólera santa, para defenderem os interesses da cidade e impedirem o triunfo dos maus; é que, efetivamente, há homens que a doçura deixa insensíveis, e nada temem senão o castigo.
855. B) Mas a cólera, que é vício capital, é um desejo violento e imoderado de castigar o próximo, sem atender às três condições indicadas. Muitas vezes é a cólera acompanhada de ódio, que procura não somente repelir a agressão, mas ainda tirar dela vingança; é um sentimento mais refletido, mais duradouro, e que por isso mesmo tem mais graves consequências.
856. 3. A cólera tem graus: a) ao princípio, é apenas um movimento de impaciência: mostra-se mau humor à primeira contrariedade, ao primeiro revés; b) depois, é arrebatamento, que faz que um se irrite desmedidamente e manifeste o descontentamento com gestos desordenados; c) às vezes, vai até à violência e traduz-se somente por palavras, mas até por golpes; d) pode chegar ao furor, que é uma loucura passageira; o colérico nesse caso já não é senhor de si mesmo, mas deixa-se arrebatar a palavras incoerentes, a gestos tão desordenados que antes se diriam um verdadeiro acesso de loucura; e) enfim, degenera por vezes em ódio implacável que não respira mais que vingança e vai até desejar a morte do adversário. Importa discernir estes graus, para apreciar a sua malícia. (Tanquerey — Compêndio de Teologia Ascética e Mística)