Tanquerey Gula

Compêndio de Teologia Ascética e Dogmática — Gula
§ I. Da gula
A gula não é senão o abuso do prazer legítimo que Deus quis acompanhasse o comer e o beber, tão necessários à conservação do indivíduo. Exponhamos: 1. a sua natureza; 2. a sua malícia; 3. os seus remédios.

864. 1. Natureza. A gula é o amor desordenado dos prazeres da mesa, da bebida ou da comida. A desordem consiste em procurar o prazer do alimento, por si mesmo, considerando-o explícita ou implicitamente como um fim, a exemplo daqueles que fazem do seu ventre um deus, «quorum Deus venter est»; ou em o procurar com excesso, sem respeitar as regras que dita a sobriedade, algumas vezes até com prejuízo da saúde.

865. Os teólogos assinalam quatro maneiras diversas de faltar a essas regras:

Praepropere: isto é, comer antes de sentir necessidade, fora das horas marcadas para as refeições, e isto sem motivo legitimo, só para satisfazer a gula.

Laute et studiose: buscar iguarias esquisitas ou preparadas com demasiado apuro, para gozar delas mais; é o pecado dos gulosos ou gastrônomos.

Nimis: é ultrapassar os limites do apetite ou da necessidade, enfartar-se de comida ou bebida, com risco de arruinar a saúde; é evidente que só o prazer desordenado pode explicar este excesso, que no mundo se chama glutonaria.

Ardenter: comer com avidez, com sofreguidão, como fazem certos animais; e esta maneira de proceder é considerada no mundo como grosseria.

866. 2. A malícia da gula vem de escravizar a alma ao corpo, materializar o homem, enfraquecer a sua vida intelectual e moral, preparando-o, por um pendor insensível, ao prazer da volúpia, que, em substância, é do mesmo gênero. Para lhe determinarmos com precisão a culpabilidade, importa fazer esta distinção.

A) A gula é falta grave: a) quando chega a excessos tais que nos torne incapazes, por tempo notável, de cumprir os nossos deveres de estado ou obedecer às leis divinas ou eclesiásticas; por exemplo, quando prejudica a saúde, quando dá origem a despesas loucas que põem em risco os interesses da família, quando leva a faltar às leis da abstinência ou do jejum, b) O mesmo se diga, quando se torna causa de faltas graves.

Dêmos alguns exemplos. «Os excessos da mesa, diz o P. Janvier, dispõem à incontinência, que é filha da gula. Incontinência dos olhos e dos ouvidos, que vão buscar pasto doentio aos espectáculos e canções licenciosas; incontinência da imaginação, que se perturba; incontinência da memória que busca no passado recordações capazes de excitar a concupiscência; incontinência do pensamento que, extraviando-se, se derrama sobre os objectos ilícitos; incontinência do coração, que aspira às afeições carnais; incontinência da vontade, que abdica para se escravizar aos sentidos… A intemperança da mesa leva à intemperança da língua. Que de faltas não comete a língua no decurso de banquetes pomposos e prolongados! Faltas contra a gravidade!… Faltas contra a discrição! Atraiçoam-se os segredos que havia promessa de guardar, segredos profissionais que são sagrados, e entrega-se à malignidade a reputação dum marido, duma esposa, duma mãe, a honra duma família, quando não é o futuro duma nação. Faltas contra a justiça e caridade! A maledicência, a calúnia, a detracção, sob as suas formas mais inexcusáveis, exprimem-se com uma liberdade desconcertante… Faltas contra a prudência! Tomam-se compromissos que não será possível guardar, sem ofender todas as leis da moral…».

867. B) A gula não passa de falta venial, quando alguém cede aos prazeres da mesa imoderadamente, mas sem cair em excessos graves, sem se expor a infringir qualquer preceito importante. Assim, por exemplo, seria pecado venial comer ou beber mais que de costume, por prazer, para fazer honra a um lauto banquete ou agradar a um amigo, sem cometer excesso notável.

868. C) Sob o aspecto da perfeição, é a gula um obstáculo sério: 1) alimenta a imortificação, que enfraquece a vontade e desenvolve o amor do prazer sensual que prepara a alma para capitulações perigosas; 2) é fonte de muitas faltas, produzindo uma alegria excessiva, que leva à dissipação, à loquacidade, aos gracejos de gosto duvidoso, à falta de recato e modéstia, e abre assim a alma aos assaltos do demônio. Importa, pois, combatê-la.