Tanquerey — COMPÊNDIO DE TEOLOGIA MÍSTICA E ASCÉTICA
ART. III. A avareza
A avareza está em conexão com a concupiscência (pleonexia, epithymia) dos olhos, de que já falamos (n. 199). Exporemos: 1. a sua natureza: 2. a sua malícia; 3. os seus remédios.
891. 1. Natureza. A avareza é o amor desordenado dos bens da terra. Para mostrar onde se encontra a desordem da avareza, importa recordar, primeiro, o fim para que Deus deu ao homem os bens temporais.
A) O fim, que Deus se propôs, é duplo: a nossa utilidade pessoal e a dos nossos irmãos.
a) Os bens da terra nos são concedidos para ocorrerem às necessidades temporais do homem, tanto da alma como do corpo, para conservarem a nossa vida e a dos que dependem de nós, e para nos darem meios de cultivarmos a inteligência e demais faculdades.
Entre esses bens: 1) uns são necessários para o presente ou para o futuro: é um dever adquiri-los por meio do trabalho honesto; 2) os outros são úteis para aumentar gradualmente os nossos recursos, assegurar o nosso bem-estar ou o dos outros, contribuir para o bem público, favorecendo as ciências ou as artes. Não é proibido desejá-los para um fim honesto, contanto que se reserve uma parte para os pobres e para as boas obras.
b) São-nos também dados estes bens para socorrermos os nossos irmãos que estão na indigência. Somos, pois, em certa medida, tesoureiros da Providência, e devemos dispor do supérfluo para assistir aos pobres.
892. Agora já nos é mais fácil mostrar onde se encontra a desordem no amor dos bens da terra.
a) Está muitas vezes na intenção: desejam-se as riquezas, por si mesmas, como fim, ou por fins intermédios que se erigem em fim último, por exemplo, para alcançar prazeres ou honras. Parar ali, não encarar a riqueza como meio de agenciar bens superiores, é uma espécie de idolatria, o culto do bezerro de ouro; não se vive mais que para o dinheiro.
b) Manifesta-se ainda na maneira de as adquirir: procuram-se com avidez, por toda a espécie de meios, com prejuízo dos direitos doutrem, com dano da saúde própria ou dos empregados, por meio de especulações temerárias, com risco de perder o fruto das próprias economias.
c) Aparece também na maneira, de usar deles: 1) Só se despendem de má vontade, com mesquinhez; o que se quer é acumular, para maior segurança, ou para gozar da influência que dá a riqueza; 2) não se dá nada ou quase nada aos pobres e às boas obras: capitalizar, eis o fim supremo que se procura a todo o transe. 3) Alguns chegam deste modo a amar o dinheiro como um ídolo, a aferrolhá-lo no cofre, a apalpá-lo com amor: é o tipo clássico do avarento.
893. C) Este defeito não é geralmente o dos jovens, que, ainda levianos e imprevidentes, não pensam em capitalizar; há contudo exceções entre os caracteres sombrios, inquietos, calculadores. Na idade madura ou na velhice é que ele se manifesta: então é que se desenvolve o temor de vir a passar míngua, fundado por vezes no receio das doenças ou dos acidentes que podem produzir a impotência ou a incapacidade de trabalhar. Os solteirões e solteironas estão particularmente expostos a este vício, por não terem filhos que os socorram na velhice.
894. D) A civilização moderna desenvolveu outra forma do amor insaciável das riquezas, a plutocracia, a sede de chegar a ser milionário ou até bilionário, não para assegurar o seu futuro ou o de seus filhos, senão para adquirir esse poder dominador que o dinheiro conquista. Quem tem à sua disposição somas enormes, goza de grandíssima influência, exerce um poder muitas vezes mais eficaz que os governantes, é o rei do ferro, do aço, do petróleo, da finança, e manda aos soberanos como aos povos. Esta dominação do ouro degenera muitas vezes em tirania intolerável.
895. 2. Sua malícia. A) A avareza é um sinal de desconfiança de Deus, que prometeu velar sobre nós com paternal solicitude, não nos deixando jamais passar falta do necessário, contanto que tenhamos confiança nele. Convida-nos a olhar para as aves do céu, que não trabalham nem fiam, não certamente para nos incitar à preguiça, senão para acalmar as nossas preocupações e nos estimular à confiança em nosso Pai celestial. Ora o avarento, em lugar de pôr a sua confiança em Deus, coloca-a na multidão das suas riquezas e faz injúria a Deus, desconfiando dele: «Ecce homo qui non posuit Deum adintorem suum, sed speravit in multitudine divitiarum suaram et praevaluit in vanitate sua. Esta desconfiança é acompanhada de excessiva confiança em si mesmo, na sua atividade pessoal: quer o homem ser a sua providência, e assim cai numa espécie de idolatria, fazendo do dinheiro o seu Deus. Ora, ninguém pode servir ao mesmo tempo a dois senhores, a Deus e à riqueza: «non potestis Deo servire et mammonae».
É, pois, grave de sua natureza este pecado, pelas razões que acabamos de indicar; é-o também, sempre que leva a faltar aos deveres graves da justiça, peles meios fraudulentos que porventura se empreguem, para adquirir e reter a riqueza; da caridade, quando se não dão as esmolas necessárias; da religião, quando alguém se deixa de tal modo absorver pelos negócios que menospreza os deveres religiosos. —. Não passa, porém, de pecado venial, quando nos não leva a faltar a qualquer das grandes virtudes cristãs, nem muito menos aos deveres para com Deus.
896. B) Sob o aspecto da perfeição, é gravíssimo obstáculo o amor desordenado das riquezas.
a) É paixão que tende a suplantar a Deus em nosso coração: este coração, que é templo de Deus, é invadido por toda a sorte de desejos inflamados das coisas da terra, de inquietações, de preocupações absorventes. Ora, para nos unirmos a Deus, é mister desprender o coração de qualquer criatura ou preocupação terrena; porque Deus quer «todo o espírito, todo o coração, todo o tempo e todas as forças de suas pobres criaturas». — É sobretudo necessário esvaziá-lo do orgulho; ora o apego às riquezas desenvolve esse orgulho, porque o homem tem mais confiança nos bens terrenos que em Deus. Deixar prender o coração ao dinheiro é, pois, levantar um obstáculo ao amor de Deus; porque onde está o nosso tesoiro lá está também o nosso coração: «ubi thesaurus vester, ibi et cor vestrum erit». Desprendê-lo é abrir a Deus a porta do coração: uma alma despojada dos bens da terra é rica do próprio Deus: toto Deo dives est.
b) A avareza conduz igualmente à mortificação e à sensualidade: quem tem dinheiro e o ama, quer gozar dele e comprar com ele muitos prazeres; ou então, se se priva desses prazeres, é para apegar o coração ao dinheiro. Em ambos os casos, é sempre um ídolo que nos afasta de Deus. Importa, pois, combater esta triste inclinação.