Ricardo de São Vítor — De Trinitate, lib. IV, cap. VI-VIII
SUBSTÂNCIA E PESSOA
Digamos primeiro o que outros disseram: que a pessoa se diz segundo a substância, e parece significar substância. No entanto, há muita diferença entre a significação de uma e a significação da outra. Porém para que se torne mais claro o que dissemos, expliquemo-lo mais pormenorizadamente. Que animal significa uma substância, ninguém o nega nem o duvida. Há porém muita diferença entre o significado de uma coisa e de outra. Pois pelo nome de animal se entende uma substância animada sensível. Animal, portanto, significa substância, mas significa também ao mesmo tempo outra coisa. Com o nome de animal se significa, pois, uma substância, mas com uma diferença específica acrescentada. Do mesmo modo, este nome homem parece significar um animal, e igualmente uma substância. Pois, que é o homem senão um animal racional mortal? Logo no que significa principalmente, con-significa algo. Animal, pois, significa uma substância, não qualquer, mas uma sensível. Homem, pelo contrário, não toda substância sensível, mas racional.
Porém nunca se diz pessoa a não ser da substância racional. E quando chamamos pessoa, nunca entendemos a não ser uma só substância, e singular. Assim, na inteligência de substância sob o nome de animal, subentende-se certa propriedade comum a todo homem; e sob o nome de pessoa, de modo igual, subentende-se certa propriedade que convém apenas a uma só; sem dúvida, nenhuma determinadamente, como no nome próprio. Subentende-se, pois, ora uma propriedade geral, ora uma propriedade especial. Com o nome da pessoa, pelo contrário, uma propriedade individual, singular, incomunicável. De onde, segundo creio, poderás notar facilmente que muito se diferenciam entre si o significado da substância e o significado da pessoa.
Se meditares bem e o examinares atentamente, verás que com o nome de substância não se significa tanto quem como quê. Com o nome de pessoa, pelo contrário, não se designa tanto o quê como quem (…) À pergunta que responde um nome genérico ou específico, uma definição ou algo semelhante; à pergunta quem, pelo contrário, costuma-se responder com um nome próprio ou algo equivalente. Portanto, com quê se inquere acerca de uma propriedade comum; com quem, acerca de uma propriedade singular. (…) Com isto, segundo creio, dá-se a entender suficientemente que no nome de substância não se subentende tanto alguém como algo. Pelo contrário, com o nome de pessoa não se designa tanto algo como alguém. Com o nome de pessoa nunca se entende mais que um alguém único e só ele, diverso de todos os demais por alguma propriedade singular. (…)
Quando se diz pessoa, entende-se certamente alguém uno que é uma substância racional. Quando se nomeiam três pessoas, entendem-se sem dúvida três “alguém”, cada um dos quais é uma substância de natureza racional. Porém se várias ou todas são uma e a mesma substância, em nada importa quanto à propriedade e a verdade da pessoa. Porém os homens julgam mais segundo o que a experiência prova do que segundo o que dita o raciocínio. Vemos, certamente, pessoas humanas; as divinas, pelo contrário, não podemos ver. Na natureza humana há tantas substâncias como pessoas. E a experiência quotidiana obriga-nos a julgar o mesmo das divinas. (…)