Shekinah – A filha, a criada e a esposa do rei

A FILHA, A CRIADA E A ESPOSA DO REI

Precisando: trata-se aqui do décimo Sefiró. Recordamo-nos de que ele nos apareceu como o conjunto da natureza criada, sensível, colocando-se no nosso frágil e perecível nível humano. Contrariamente à literatura rabínica, que se recusa a ver neste décimo Sefiró algo mais do que uma «face» de Deus, a sua «face» no universo criado, os cabalistas vão transformar essa «face» numa espécie de identidade feminina: a Shekhinah.

A Shekhinah é uma figura cheia de mistério; com ela, a sexualidade penetra o universo. A Shekhinah constitui a «complementaridade» do elemento masculino no mundo. Ela apresenta-se-nos, ao mesmo tempo, como a Filha, a Mãe e a Esposa.

A Filha… Mas, de fato, essa filha é-nos frequentemente apresentada como exilada, banida pelo seu próprio pai. Este «mito» de um «exílio da Shekhinah» corresponderá ao Tsimtsum, ao próprio «exílio» que Deus impôs a si próprio a fim de poder assegurar à sua criação independência, autonomia e liberdade?, ou, tratar-se-á sempre de uma espécie de separação existente no seio do próprio Deus, de um princípio Primeiro, à primeira vista unificado, mas transportando a virtualidade de uma dualidade masculina e feminina?, ou ainda, tratar-se-á do pecado de Adão e do pecado do homem? A verdade é que «qualquer coisa de Deus está ela própria isolada de Deus» e a «grande tarefa» do mundo será apressar a união de Deus com a sua bem-amada.

A Esposa… o tema das Núpcias é essencialmente bíblico. Encontramo-lo aqui aplicado a Deus e à sua Shekhinah, estando esta última muitas vezes identificada com Israel e com o povo bem-amado.

Mas, a um nível metafísico propriamente dito, trata-se realmente de um casamento, de um casamento entre aquilo que em Deus constitui o princípio masculino: «o Bendito seja Ele», e o princípio feminino: a Shekhinah ou Matrona. E o fruto desta união divina não é outro senão a Criação…

Disto resulta que o dualismo sexual se encontra inscrito na constituição do universo. Segundo o Zohar, «a forma sexual é a forma primordial da criação» Zohar, III, 44 b, 151 b, 290 b). «Quando o Antigo quis formar todas as coisas, formou-as segundo o tipo macho-fêmea» (Ibid., III, 292). Também o Cântico dos Cânticos, o cântico do amor, é o cântico de toda a criação. «Há um segredo confiado à guarda de um sábio… somente: no meio de um imenso rochedo, muito secreto, encontra-se um palácio chamado o «Palácio do Amor». É a região onde os tesouros do rei estão acumulados; as suas marcas de amor estão lá» (cf. Zohar, II, 97 a).

A Mãe… e a Criada… uma criada que é ao mesmo tempo rainha e governanta do palácio do rei. Chamaram-lhe Matrona. Ela serve a divindade e governa as legiões de anjos, sendo muitas vezes comparada à Torá. O rei, que está fascinado por todas as qualidades que vê nela, pergunta a si próprio como a recompensar. E não encontra melhor forma de lhe testemunhar o seu amor e reconhecimento que fazendo-a dona absoluta da sua própria casa. Ele faz uma proclamação dirigida a todos os súbditos do seu reino: «Todos os poderes do rei estão confiados à Matrona.» Todos os poderes do rei? Isto não basta. Ele traz-lhe também todas as suas armas. Submete-lhe todos os seus oficiais e todos os seus servidores. Traz-lhe de presente joias, pedras preciosas e todas as riquezas do Tesouro Real (cf. Zohar, II, 50 b, 51 a).

Mas acontece que ela pode apresentar um rosto aterrador e traços quase demoníacos, como se não pudesse libertar-se de uma ambivalência mais ou menos inquietante. Perto da «Mãe das Alturas», habita sempre, como uma sombra por vezes ameaçadora, a «Mãe das Profundezas». Dá-se com estas alternâncias o mesmo que se dá com as «fases» que se sucedem à maneira de «lunações», talhando no firmamento a grinalda sucessiva dos quartos e dos círculos da claridade lunar.

É uma face noturna da Shekhinah que se mistura à «árvore da morte».

Reencontramos, sob outro ângulo, a ideia fundamental de um exílio da Shekhinah.

Este exílio sensibilizou numerosos cabalistas. Testemunham o fato os «Companheiros da Shekhinah», que à meia-noite caminhavam pelas ruas de Safed, lamentando-se: «Levantem-se, por amor de Deus, porque a Shekhinah está em chamas e Israel está em perigo!» (Abraham Halevi Beruchim). Exílio da Shekhinah que provém da invasão do pecado.

TRYON-MONTALEMBERT, René de & HRUBY, Kurt. A Cabala e a Tradição Judaica . Lisboa: Edições 70 , 1979