Sertillanges Da Alma

A.D. Sertillanges — As Grandes Teses da Filosofia Tomista
Da Alma
A — O lugar do ser humano na criação.
Pelo estudo da vida em geral, e da alma, que é o princípio desta vida, já vimos qual o lugar que ocupa o composto humano na escala dos seres. O homem nem é «anjo nem bruto»; nem anjo encarnado, nem bruto elevado; é uma natureza mista, uma natureza composta, que como tal, tem, por assim dizer, uma feição ontológica peculiar, e cujo caráter próprio, irredutível aos elementos, se manifesta no seu agir. Ao descer de Deus até a matéria plena, por aquela degradação progressiva que, para S. Tomás, é a lei de toda a criatura, deve encontrar-se este grau, deve passar-se pelo homem, como por uma região intermediária do ser, como por um ponto de ligação.

A alma humana tem perfeição suficiente para subsistir por si mesma, como o anjo; mas não, para se caracterizar individualmente e agir sem a cooperação do corpo. Este serve-lhe para captar as vibrações cósmicas e para lhes responder pelas suas reações. Só por meio do corpo nos é dado conhecer, não digo já a matéria, mas também o espírito; pois toda a idéia, até mesmo a de Deus, radica primitivamente nas coisas, as quais só através dos sentidos entram em nós (oninis cognitio a sensu).

Se percebemos o que sucede no mundo exterior, se conjeturamos ou afirmamos com verdade o que não vemos, é pelo conhecimento (gnosis — episteme) das modificações do nosso corpo, que o fazemos. E inversamente, como a alma não pode agir diretamente sobre o mundo exterior, por este ser muitíssimo heterogêneo, embora no mais profundo da sua essência seja da mesma natureza que ela, serve-lhe de intermediário o corpo animado. E assim, as modificações corporais marcam o limite da nossa ação sobre a natureza, e da nossa arte de traduzir a realidade na forma dos nossos pensamentos. A virtualidade da alma está propriamente em dominar o seu meio adjunto, o corpo e, mediante este, o outro. Será por conseguinte tanto mais potente esta virtualidade da alma quanto maior número de efeitos for capaz de produzir no corpo, e a deste tanto maior, quanto menos efeitos nele produzir o meio exterior.

A nossa alma fica pois situada na linha divisória, múltipla e misteriosa, entre o nosso ser físico e o universo; preside à nossa unidade e, por conseguinte, à nossa autonomia e oposição defensiva, assim como às nossas mudanças; distingue-nos do mundo com que estaríamos confundidos, se não fosse ela, como nele nos dissolvemos quando ela se aparta; é o guarda das nossas portas, «o homem forte> que põe a salvo o nosso eu, o agente que prove à nossa conservação, e também o agente da compenetração de dois mundos.

Quem pode saber, e quem poderia exprimir até onde vão os poderes da alma, sobre este mundo aparentemente tão longínquo, que é, para cada um, a natureza e os outros homens? — Vão evidentemente até onde vai a nossa parcial identificação com o meio. Ora o nosso corpo é precisamente este meio, enquanto em parte se identifica conosco.

Nada prova contudo que a zona de identificação parcial, assim estabelecida, se não possa alargar mais. E, na medida em que se alargasse, teríamos a faculdade de modificar o nosso meio por atos imanentes, conscientes ou não, segundo o modo como nos modificássemos a nós mesmos. E nesse caso dar-se-ia a magia, a exteriorização da sensibilidade, os êxtases, a telepatia etc, etc, fenômenos que S. Tomás chegou a conhecer ou a conjeturar, e que nem sempre atribui à intervenção diabólica.

Mas, porque estamos tão intimamente relacionados com o mundo superior, porque a alma tem um agir próprio em que a matéria não entra formalmente, embora entre como condição, a natureza e finalidade do ser humano sobem para uma ordem muito mais alta.

O homem é o fruto dum misterioso composto entre a natureza e o espírito. O íntimo parentesco destas duas frações de ser, torna-se em nós bem visível pela clareza com que os caracteres próprios de cada uma se manifestam. Daqui, uma multidão de contrastes que todavia não são contradições. Sentidos e razão, desejos baixos e aspirações sublimes, serão talvez opostos, mas só como em Rembrandt, a sombra e a luz. Pascal exagerou, atribuindo exclusiva e necessariamente à queda original, particularidades que ela certamente acentuou, mas que subsistiriam sem ela. O «monstro» de Pascal explica-se em grande parte naturalmente, e muito longe de ser monstro, não passa de protozoário ou antropóide. A nossa natureza está bem caracterizada; é una, visto proceder do Uno que se comunica em graus diversos. O que dela se deve afirmar é que é composta e diversa, pela sua mesma posição que é na linha divisória; e por conseguinte, tal natureza está exposta a ser dividida, embora possa e deva defender-se de tal divisão.

S. Tomás, que viveu profundamente esta verdade, previu quão perigoso seria pôr em oposição corpo e espírito, ou confundi-los. E’ este um dos pontos de aberração das filosofias, algumas das quais nos concedem apenas uma das partes de nós mesmos, desprezando ou negando a outra. S. Tomás porém considera o nosso todo na sua integridade. Com um realismo clarividente, analisa o ser humano como um composto físico, e sem esquecer nenhuma das suas primeiras afirmações, abre ao espírito perspectivas magníficas. É o discípulo de Platão e de S. Agostinho, e ao mesmo tempo de Aristóteles, o físico e naturalista; e além disso, é o discípulo de Cristo, em Quem, graças à doutrina cristã, põe o fecho de abóbada do edifício do ser humano e a síntese do seu fim, ligando-o assim com á ordem sobrenatural.

Dizíamos que o ser desce de Deus; sim, desce, mas também para Ele sobe. Ao descer, encontramos o homem no ponto de união do espírito com a matéria que o reveste; e ao subir, vemos o homem, incluindo a matéria, orientar-se para o espírito e participar, mesmo no corpo, dos valores espirituais: Por uni lado, humilhação, por outro exaltação magnífica, é o que tal condição nos sugere. Isto porém pertence ao moralista.

B. — A inteligência.
Já antes advertimos que só o nosso agir nos pode pôr em relação com o outro; e que o conhecimento (gnosis — episteme) é uma mudança de que nós somos o sujeito; e esta é a razão porque, de alguma maneira, pudemos deduzir a natureza do conhecimento (gnosis — episteme) da do ser. E, inversamente, conhecido o ser nos seus diversos graus, pelas nossas primeiras verificações, pudemos voltar-nos sobre a faculdade do conhecimento (gnosis — episteme), para melhor lhe determinar a natureza. Este último ponto temos que o precisar um pouco melhor.

O objeto próprio da inteligência é a natureza das coisas. O ser é idéia; nos objetos da nossa experiência, a idéia, ao dar-nos o ser sob o nome de forma substancial ou acidental, sofre uma degradação que é como que uma queda; uma vez individuada, a infinidade da sua extensão fica reduzida ao singular ; entra em composição com o quase nada da indeterminação: — a matéria. E nestas condições, fica dependente de faculdades de conhecimento (gnosis — episteme) da mesma natureza que ela, imersas também na matéria, encarnadas e reduzidas às condições do tempo e do espaço que determinam a matéria — ; a estas faculdades damos o nome de sentidos.

É que, de fato, como qualquer sujeito atua sempre na ordem em que ele próprio está, sempre dentro da sua esfera, ao objeto encarnado, termo da mudança cognoscitiva, deve corresponder, como ponto de partida, um sujeito da mesma ordem. E em virtude do mesmo princípio, e porque é da nossa própria substância que formamos os nossos objetos internos, só podemos atingir a idéia em si mesma, a idéia enquanto idéia, a idéia arrancada da imersão na matéria, por meio duma faculdade também abstrata, ideal, desencarnada, imaterial, que é a inteligência.

O conhecimento (gnosis — episteme) intelectual consiste em encontrar o ser no ponto de partida, antes da individuação nas coisas. Como porém o vamos encontrar já individuado, temos de recuar até ao ponto de partida, separando a idéia, do ser que a encarna, subindo assim da idéia realizada à idéia de realização, do edifício à planta, da obra de arte que a natureza nos apresenta à arte com que a natureza a cria, dirige e impele para o seu fim. Houve quem pretendesse negar a distinção entre a inteligência e os sentidos, sob pretexto de que a idéia, espécie de cópia delineada ou vaga generalização obtida pela sobreposição de imagens sucessivas, não transcendia em nada a sensação. Ainda não mostramos quanto é ilusória esta objeção. A imagem esquemática de que se fala, existe de fato; é o fantasma da imaginação de que vamos já tratar; notamo-lo perfeitamente em nós; mas podemos notar também que, nesse fantasma, vemos ainda outra coisa diferente dele. A idéia duma relação matemática, ou duma definição, ou duma característica do ser, ou até mesmo a idéia duma negação ou privação, cujo objeto não existe na realidade das coisas, ou ainda a idéia duma idéia, quando o pensamento se volta sobre si mesmo, tudo isto, embora nos sirvamos sempre de fantasmas, é de si estranho aos fantasmas. Porque na prática assim procedemos, é que as nossas idéias gerais se manifestam em qualquer hipótese, verdadeiramente gerais, ou melhor, universais, com uma infinidade de aplicações próprias, em oposição ao concreto que só tem uma. O esquema imaginativo é caracterizado por uma generalidade imprecisa, e a idéia por uma universalidade precisa; o esquema imaginativo está sujeito ao tempo e à mudança; sob a mesma idéia, não se conserva idêntico em dois instantes diversos; a idéia, essa não; aparece sempre como necessária e intemporal, embora seja idéia dum objeto mutável. De fato, o esquema imaginativo considerado sozinho, em si mesmo, seria apenas uma sensação de categoria inferior que não exprimiria nada de especial, nem concreto nem abstracto, e que ficaria sempre muito longe da viva intuição sensível, sem nunca suspeitar sequer da inteligência.

Ora se isto é certo, não haverá direito de negar ao sujeito do pensamento ou seja, à inteligência, as vantagens que dai lhe advêm. As faculdades classificam-se pelos atos e estes pelos objetos. Ora, como a inteligência encontra no sensível o objeto duma intuição que ultrapassa esse sensível; como é capaz de ler na essência (inteligência, intus-legere), é forçoso supô-la como a essência, na ; ordem do universal, do intemporal e do necessário; e por conseguinte, ao menos negativamente, abstrair dum meio,, seja externo seja interno, que dependa do movimento, da particularidade temporal e espacial, da contingência. Se eu me torno imaterial, é porque, sob este aspecto, sou imaterial em potência; « Porque a alma conhece as naturezas universais das coisas, afirma S. Tomás, é que compreende que a forma, segundo a qual conhece, é imaterial; caso contrário, estaria individuada e não nos levaria ao conhecimento (gnosis — episteme) do universal. E depois, visto a forma inteligível ser imaterial, chega-se ao conhecimento (gnosis — episteme) de que a inteligência, a que aquela forma pertence, é uma coisa (res quaedam) independente da matéria» (Q. X, De veritate, a. 8).

Precisando bem as coisas, podemos distinguir aqui quatro termos no mesmo processo: objeto, ato, faculdade e ser. A mudança cognoscitiva reúne todos estes termos fazendo com que não pertençam a mundos diferentes, a ordens díspares da realidade. Se o objeto é imaterial, só imaterialmente se poderá atingir, e temos o ato; se este é imaterial, só uma potência imaterial o poderá exercer: é a faculdade; finalmente a faculdade e o seu sujeito imediato nunca podem ser heterogêneos; todavia, ainda se não vê a imaterialidade duma potência, do seu ato e do termo deste ato, que procedem dum ser inteiramente material. Sê-lo-á talvez sob certos aspectos; mas é certamente imaterial como sujeito daquela potência, como agente deste ato e beneficiário deste objeto. Dá-se uma evolução especial (sui generis) que não pode produzir-se em duas trajetórias; se o processo é uno, aos diversos termos em que a análise o dividiu, deve convir a mesma característica.

E assim, chegamos à singularidade duma potência pertencente a uma alma que é ato do corpo, sem esta potência ser ato do corpo. Devemos conceber uma emergência de ato, em força da qual a alma ultrapassa as condições materiais em que se apóia. Colocada nos confins de dois mundos, a alma participa de ambcs, sob todos os aspectos; e no conhecimento (gnosis — episteme), como em tudo o mais, toma da matéria e do espírito as características do homem.