O que não é dito no dito [de Angelus Silesius], e tudo depende disso, é antes que o homem, no fundo mais oculto da sua essência, é primeiro verdadeiramente, quando é à sua maneira como a rosa, sem porquê. (GA10, 72-3)
A rosa sobre a qual Silesius escreve é simultaneamente o modelo para Deus e para a alma, conforme retratados por Meister Eckhart. Ao desabrochar sem porquê, a rosa exemplifica a completude e a plenitude do ser divino (plenitudo esse), que não necessita de nada fora de si. A rosa também retrata a alma que “deixa Deus ser Deus”, que deixa Deus entrar e se tornar a fonte interna de sua vida. A alma age a partir da espontaneidade do Deus dentro dela. E assim, como Deus, a alma vive uma vida “livre e sem limites” – sem porquê:
Deus não busca os Seus. Ele é livre e desimpedido em todas as Suas obras, e as realiza com amor genuíno. Aquele homem que está unido a Deus faz exatamente a mesma coisa. Ele também é livre e desimpedido em todas as suas obras e as realiza exclusivamente para a honra de Deus e não busca a sua própria; e Deus age nele. (Q, 154,27-32/Serm., 128)
Heidegger também vê um modelo duplo na rosa. Pois a rosa é modelo tanto do Ser quanto do Dasein. A rosa é, em primeiro lugar, modelo do Ser. Silesius diz que a rosa floresce “porque” floresce. Sobre isso Heidegger comenta:
O “porque” aqui não, como costuma acontecer, nos remete a outra coisa que não é um florescimento e que deveria encontrar o florescimento em outro lugar. O “porque” no dito simplesmente refere o florescimento de volta a si mesmo. O florescimento está fundado em si mesmo, tem seu fundamento em si mesmo. O desabrochar é um puro emergir de si mesmo (Aufgehen aus ihm selbst), puro brilho. (GA10, 101-2; cf. GA10, 73)
Mas aquilo que emerge de si mesmo é o que Heidegger entende por Ser. O ser é physis, o que significa o poder que surge e perdura (aufgehend-verweilend-Walten: GA40, 23). O brilho (Scheinen) da rosa é a sua beleza (Schönheit):
A beleza é uma forma mais elevada de Ser, o que significa: puro emergir de si mesmo e reluzente. O mais antigo dos pensadores gregos disse Physis. . . . (GA10, 102)
A rosa surge por si mesma, repousando em seu próprio fundamento, emergindo por si mesma no desvelamento. Não é de forma alguma um objeto que tenha sido moldado pelo sujeito pensante.
A linguagem de Heidegger neste ponto lembra a fala do próprio Eckhart sobre a vida de Deus no texto dos escritos latinos que citamos acima:
A vida significa um certo transbordamento pelo qual uma coisa, brotando dentro de si mesma, primeiro se inunda completamente, cada parte de si mesma interpenetrando todas as outras, antes de se derramar e transbordar em algo externo. (LW, II, 22/CI., 226)
Deus é um processo de brotar da ocultação para a auto-revelação – primeiro no Filho e no Espírito Santo, depois na própria criação. Deus emerge das trevas da “Divindade”, do “deserto” divino, do “abismo” (Abgrund) – outra palavra que é importante para ambos os pensadores – para a luz do dia, para “Deus” e criaturas. Deus é um arche para o místico medieval, não porque Ele seja uma causa primeira dos entes — embora também o seja para o metafísico escolástico — mas porque Ele é a base sobre a qual os entes se sustentam, a fonte da qual eles brotam. Eckhart diz que “in principio” significa permanecer no fundamento divino do qual se emerge, surgindo desde a sua origem (LW, II, 160-2; III, 63; Q, 348,4-9/Serm., 181). A physis de Heidegger e a “vida” (vita, Leben) de Eckhart são, portanto, profundamente semelhantes. Cada um é um processo de ascensão à presença, de emergência ao desencobrimento. Além disso, cada um é um processo “autossuficiente” no sentido de que cada um surge porque surge, sem necessidade de justificação externa. A rosa é porque é; não precisa de “justificativa”.