SER EM ECKHART III
Excertos de Giuseppe Faggin — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
Também no exame do conceito de ser absoluto, Eckhart procede de modo tomista-plotiniano. Com efeito, é tomista a proposição, mas plotiniano o método e as conclusões, posto que trata o ser com os mesmos critérios metafísicos com que Plotino meditava sobre o Uno, ainda que o conceito inicial de ser, alheio como o do Espírito à noção do Uno na metafísica plotiniana, deveria tê-lo levado à posições equívocas e inseguras. Mas seu vigilante sentido da abismal oposição entre o divino e o humano devia permitir-lhe encontrar, além das fórmulas escolásticas, quase por afinidade eletiva, seu verdadeiro caminho.
Se na Quaestio o ser era concebido como “algo determinado” e por conseguinte excluído de Deus, sumo espírito operante, agora é reincorporado a Deus mas só como unidade absoluta. No Uno não existe o mais nem o menos, nem a distinção, nem este ou aquele ente criado, pois o Uno rejeita a divisão, o número e a multiplicidade. Está isento de todo número e é, portanto, uno sem unidade e está acima do ser e do ente, cuja diferença é o número. Todo o ente, enquanto determinado e circunscrito, é negação do que ele não é e do que exclui de si; Deus, como absoluta unidade, não é uma certa parte do universo, mas uma realidade superior e transcendente ao próprio universo; portanto, não lhe corresponde nenhuma negação ou privação, senão unicamente, e só a ele, a negação da negação “que é a medula e o ápice da puríssima afirmação”.
Eckhart insiste sobre a distinção entre o Ser absoluto e o ser relativo: em Deus “o uno, o ente, o verdadeiro, o bom, são idênticos”, e quem se afasta do uno, do verdadeiro, do bem, de Deus. Pois bem, o ente determinado não confere o ser em si e, por conseguinte, tampouco a unidade, nem a verdade, nem o bem, que são valores universais, senão tão somente a determinação do ente.
Por isso Deus é o ser das coisas, enquanto tal e “está em todas as partes, se é ente, mas não está em nenhuma, se é este ente”, não se deve então identificar nas coisas o esse e a essentia, se não se quer contradizer as conclusões racionais obtidas na primeira quaestio. A identificação é possível somente em Deus, mas com a condição de que a essência que se quer identificar com o ser seja a de Deus, não a dos entes determinados.
Por conseguinte, todas as coisas criadas, enquanto tais, são distintas e estão separadas de qualquer outra coisa. Mas em Deus não há dualidade, porque ele é o esse indistinctum. Mas se Deus e a criatura se opõem como o uno e o não-numerado se opõem ao número, ao numerado e ao numerável. Deus, justamente por ser indistinto, é “muito distinto de tudo e de qualquer coisa criada”. Com efeito, tudo o que se distingue por sua indistinção é tanto mais distinto quanto mais indistinto é, e vice-versa. Portanto, “em certo modo Deus é indistinto porque se distingue por sua indistinção”. A transcendência parece não só salva senão que também energicamente afirmada. “Deus é o mais profundo para todas as coisas, tanto quanto possa sê-lo e assim cria todo ente; é também o extremo porque está sobre todas as coisas e assim também fora de todas as coisas”. Por isso em sua Apologia ao processo de Colônia, Eckhart acreditava poder protestar contra algumas teses de autêntico sabor panteísta que lhe atribuíam, e declarava errôneas proposições como estas: “A quidditas de Deus é quidditas minha; todas as criaturas são um só ser; tudo o que é, isto é Deus”. Mas a fim de julgar o alcance efetivo da defesa eckhartiana é necessário levar a termo a exposição de sua doutrina teológica.
Não nos esqueçamos que o ser divino é Espírito e potência criadora: quanto mais perfeito e simples é um ser, tanto mais abundante é, segundo suas razões e potências; “sua atuação é sua própria substância; para ele atuar ou agir é ser”. A teoria platônica de que “todo o bom se difunde” encontra aqui sua solene confirmação e seu mais completo desenvolvimento. Visto que a criação é collatio esse (dar o ser) e nisto consiste a verdadeira causalidade, Deus somente pode chamar-se Causa; qualquer outro ente não pode outorgar o ser e, por conseguinte não pode considerar-se como causalidade realmente eficiente. A teoria, que tem seu primeiro começo na escola eleática e seu maior desenvolvimento no plotinismo, para reaparecer decididamente, através do cartesianismo, em Spinoza, terá importantíssimas aplicações na moral e levará, como veremos, a uma concepção ativista da vida e não como pareceria, ao quietismo. Deus é atividade criadora, mas é também o Ser eterno, uno, indistinto; por conseguinte não podemos dizer que “tenha criado” ou “tenha atuado’, como se sua potência pudesse ter um princípio ou um fim. “O próprio Deus é sempre novo, sempre gera, sempre cria, sempre trabalha e trabalhando renova todas as coisas… e assim é nova toda a obra de Deus”. O devenir temporal das coisas deixa de ter significado em Deus e se pulveriza na atualidade dos instantes presentes e em cada um destes nos é concedido intuir o eterno presente. O ato da criação divina “não se transforma em passado, senão que sempre está em princípio e em processo e é novo”; mas já que o criar é, como sabemos, collatio esse ex niihilo e dar o ser a partir do nada, a obra de Deus é um criar incessante e o mesmo regime providencial das coisas é uma perene criação, instante após instante. A relação entre o Criador e a Criatura é da maior intimidade e é imediata; não conhece fases nem processos de formação ou de aperfeiçoamento; a obra de Deus, “nem bem começa”, é perfeita e sua geração é instantânea, não sucessiva.
Deus, como ser perfeito, atua, mas ao atuar não sai de si mesmo — porque sair de si mesmo significaria sair do ser, isto é, anular-se — senão que “em si mesmo unicamente repousa”. Por conseguinte “Deus repousa criando e dá repouso ao que criou”. Tudo o que se encontra fora do ser é inquieto e no ser encontra sua paz. Nisto consiste este agir sem um porquê, presente já na concepção ético-religiosa de um Plotino, de um Lao Tzu e do Bhagavad Gita, que se transformará no ideal moral de Eckhart. E posto que fora do ser está o nada, Deus não cria fora de si, senão em si mesmo. Não se deve supor que Deus tenha projetado ou criado suas criaturas fora de si para um certo vazio infinito. O nada não recebe nada nem pode ser indivíduo, fim ou finalidade de nenhuma ação. Por isso Deus criou todas as coisas não para que estivessem fora dele! ao lado dele, ou mais além dele, como os demais artífices, senão que as tirou do nada, quer dizer, do não-ser, para o ser, para que o encontrassem, o recebessem e o possuíssem em si mesmas. “Deus produz todas as coisas em si mesmo”, visto que “tudo o que procede de Deus está em Deus”; e o que não é em Deus, quer dizer, no ser, mas fora dele, não é: é o nada!
Por isso Deus está em todas as coisas e as coisas estão nele; Ele é o “ser comum a todas as coisas, e não somente comum como também idêntico em todas as coisas e a todas as coisas Ele se dá inteira e integralmente, porque Deus não sabe dar-se pouco. Assim afirmado o panteísmo, quer dizer a imanência dos seres em Deus, se deduz que Deus não pensa, não conhece e não ama nada fora do ser, isto é, fora de si mesmo e ama em si com igual amor tudo o que é uno, verdadeiro e bom; o ser das coisas feitas é em Deus um só ser e suas distinções formais se anulam na Unidade e Infinidade do Absoluto. Até aqui chega o que temos chamado “eleatismo teológico” de Meister Eckhart; a exigência da unidade devia submergir o múltiplo no “mar da infinita substância” e apresentar uma imagem da realidade que quase não se diferencia do monismo de Spinoza. E na realidade, se o ser, como tal, de todas as coisas criadas, não “este ser particular”, é Deus, se este ser é “comum a todas as coisas”, se fora dele é o nada, nos parece impossível separar, com um nítido corte, Deus do mundo. A analogia entis, invocada várias vezes por Eckhart para defender sua ortodoxia, parece mais apropriada para ratificar uma dialética no seio do Absoluto do que uma distinção ontológica. Portanto, é necessário porem evidência o ritmo da vida divina e levar em consideração as exigências do múltiplo: porque, como já sabemos, o Uno não é enunciável senão como “o Indistinto oposto ao distinto”, como “negação da negação”, isto é, em função da multiplicidade.