BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
O Segundo Tratado do Grande Set (VII,2)
Tradução de L. Painchaud, in BCNH, n. 6, 1982.
A trama histórica deste polêmico tratado é simples: o Salvador é enviado a este mundo pela assembleia celeste; descendo à terra, encontra as forças deste mundo, sofre uma espécie de crucifixão e retorna ao Pleroma. A primeira parte (p. 49,10-59,18) insiste no simulacro da paixão (interpretação docetista) e ataca o dogma realista da Grande Igreja. A segunda parte (p. 59,19-70,10) prolonga a polêmica da primeira parte e denuncia na Grande Igreja a pretensão de encarnar a verdadeira Igreja.
O tratado é gnóstico e cristão: não há dúvida de que é Jesus Cristo quem se oculta por detrás de Set e são numerosas as referências neotestamentárias. E há também o contorno gnóstico do escrito: é a gnose que salva; o Antigo Testamento e particularmente o seu Deus são tidos como fundamentalmente maus; o Novo Testamento, por oposição, é bom; por fim, a crucifixão consiste na substituição de Jesus por Simão Cireneu (teoria do gnóstico Basilides, segundo Ireneu em Contra as heresias I, 24,4). No que se refere à interpretação do Antigo Testamento, podemos ler como palavras do Salvador a seguinte passagem:
Com efeito, é irônico que Adão tenha sido modelado como uma contrafação do modelo do Homem pela Hebdômada, como se ela fosse mais poderosa que Eu e meus irmãos! Mas nós somos inocentes diante dela, pois nós não pecamos.
É irônico que Abraão, Isaac e Jacó tenham recebido falsamente da Hebdômada o nome de Patriarcas, como se ela fosse mais poderosa que Eu e meus irmãos! Mas nós somos inocentes diante dela, pois nós não pecamos.
É irônico que o filho de Davi tenha recebido o nome de Filho do Homem, já que ele foi apenas um joguete da Hebdômada, como se ela fosse mais poderosa que Eu e os de minha raça! Mas nós somos inocentes diante dela, pois nós não pecamos.
É irônico que Salomão, pensando ter recebido a unção, fosse levado ao orgulho pela Hebdômada, como se ela fosse mais poderosa que Eu e meus irmãos! Mas nós somos inocentes diante dela, pois nós não pecamos.
É irônico que os doze profetas, que foram falsa imitação dos verdadeiros profetas, tenham sido contrafação produzida pela Hebdômada, como se ela fosse mais poderosa que Eu e meus irmãos! Mas nós somos inocentes diante dela, pois nós não pecamos.
É irônico que Moisés, escravo fiel, tenha recebido o nome de companheiro por causa de testemunho dado falsamente sobre ele, que nunca me conheceu, nem ele nem os que são antes dele! Desde Adão até Moisés e João Batista, ninguém dentre eles me conheceu, nem a mim nem a meus irmãos, pois (tudo o que eles tinham) era ensinamento dado por seus anjos (a propósito) de observancias alimentares e de amarga servidão, de modo que eles jamais conheceram a Verdade nem a conhecerão. Com efeito, grande ilusão cobre sua alma, de modo que eles não possam jamais conceber a liberdade, nem a conhecer, assim como também não conhecerão o Filho do Homem (p. 62,27-64,11).
Esta litania apresenta as figuras do Antigo Testamento como contrafações ou falsas testemunhas suscitadas pela Hebdômada, que outra coisa não é senão o Arconte. Essas figuras são irônicas porque tomam o Salvador por homem carnal, mas ele é apenas sua contrafação!
Em contrapartida, o próprio Cristo proclama sua origem celeste e seu arraigamento nos crentes, eles próprios detentores dos eãos do Pleroma:
Eu sou Cristo, o Filho do Homem, aquele que saiu de vós, estando em vós, para ser desprezado por causa de vós, a fim de que vós próprios vos esquecêsseis da dualidade. E não vos torneis mulheres1, para não gerar o mal e seus irmãos: ciúme e discórdia, cólera e arrebatamento, temor e duplicidade, bem como os desejos vãos, sem consistência. Mas Eu sou para vós mistério indizível (p. 65,18-32).
Como o docetismo constitui característica deste tratado, não é de surpreender que a crucifixão seja apresentada como comédia, com um Cristo risonho diante de seus adversários, desprezando-os:
E Eu estava na goela dos leões.. Quanto ao plano que eles tramaram contra mim, tendo em vista a destruição de seu erro e de seu desvario, eu não combati contra eles como haviam concebido. Ao contrário, não me afligi por nada. Essas pessoas me castigaram e eu morri, não na realidade, mas naquele que se manifestou, pois os ultrajes que sofri haviam saído de mim. Lancei a vergonha para longe de mim e não fraquejei diante do que eles me infligiram, quando poderia ter-me tornado escravo do temor. Mas Eu sofri a seus olhos e em seu espírito para que eles jamais encontrassem qualquer palavra a dizer sobre isso. Pois essa morte de mim que eles pensam ter ocorrido (produziu-se) para eles em seu erro: eles puseram seu homem nos cravos para a sua própria morte. Com efeito, seus pensamentos não me viram, pois eles eram surdos e cegos. Mas, fazendo isso, eles se condenavam. Eles me viram e me infligiram castigo, (mas) era outro, seu pai. Aquele que bebeu o fel e o vinagre não era Eu. Eles me flagelaram com o caniço, (mas era) outro. Aquele que carregou a cruz em suas costas era Simão. Foi outro que recebeu a coroa de espinhos. Quanto a mim, Eu me rejubilava nas alturas, acima de todo o império dos arcon-tes e da semente de seu erro (e) de sua glória vã e zombava de seu erro (p. 55,9-56,19).
O fim deste texto está próximo de Mc 15,16-23. As p. 58,13-59,9 apresentam o significado da crucifixão ecoando Mt 27,45-54:
Eu sou aquele cuja elevação manifestada e cujo terceiro batismo manifestado em imagem o mundo não compreendeu. Quando foi rechaçado o fogo das sete Dominações e o sol das forças dos arcontes se pôs, as trevas apoderaram-se deles. E o mundo tornou-se pobre, enquanto ele encontrava-se encerrado em imensidade de laços. Ele foi pregado no madeiro e fixado com a ajuda de quatro cravos de (bronze). O véu de seu Templo foi rasgado por suas próprias mãos. Um tremor foi captado do caos da terra, pois foram libertadas as almas que jaziam no esquecimento inferior e elas se ergueram, caminhando livremente e despojando o ciúme ignorante e a insensatez de junto dos sepulcros de morte. Revestindo o novo homem, elas reconheceram esse Bem-aventurado que é perfeito (saído) do Pai eterno e imperceptível e da Luz infinita — sou Eu.
Podemos constatar que a morte de Cristo como batismo (Mc 10,38-39), vista de maneira docetista, faz com que o gnóstico rejeite o batismo de água: como Cristo realmente não morreu, o crente não pode descer com ele no batismo e morrer com ele. Essa visão contradiz a de Rm 6.
Por fim, o texto discorre sobre a sorte dos eleitos, perseguidos mas livres. Um anúncio escatológico final enfoca a reunião da comunidade gnóstica já nesta terra e, algum dia, com o Pleroma celeste (p. 67,12-27):
Ora, isso não aconteceu nem poderia acontecer entre nós, em qualquer região ou lugar, na divisão ou ruptura da paz. Ao contrário, é reunião e ceia de amor fraternal, pelo fato de que todos são perfeitos naquele que é. (Essa reunião realizou-se) também nos lugares que estão abaixo do céu, tendo em vista a reunião daqueles que me conheceram na salvação e na indivisibilidade com aqueles que existiam para a glória do Pai e da Verdade: depois de terem sido separados, eles foram restabelecidos no Um pela Palavra viva.
Em conclusão, este tratado mostra que a comunidade a ele ligada estava essencialmente preocupada com a definição da salvação e da clarificação da natureza e do papel de Cristo. Os dados polêmicos das exposições talvez permitam entrever que as altercações com a Grande Igreja eram acompanhadas de fortes tensões teológicas no interior da comunidade.
a mulher simboliza aqui a matéria. ↩