Gershom Scholem — As Grandes Correntes da Mística Judaica
ALMA
A psicologia do Zohar mostra uma mistura peculiar de duas doutrinas sustentadas por certas escolas da filosofia medieval. A primeira distinguia entre a alma vegetativa, a animal e a racional — três estágios que a doutrina aristotélica considerava como faculdades diferentes da alma única, ao passo que os seguidores medievais de Platão inclinavam-se a pensar nelas como três entidades diferentes. A segunda, que foi em geral defendida pelos filósofos árabes e popularizada entre os judeus por Maimônides, baseia-se na concepção do “intelecto adquirido”. De acordo com este ponto de vista, a faculdade racional latente no espírito atualiza-se no processo de conhecimento, e esta realização do intelecto é o único guia para a imortalidade1. A esta doutrina, o Zohar dá agora um feitio cabalístico. Retém a distinção entre as três ações espirituais: Nefesch ou vida; Ruach ou espírito; e Neschamá ou alma propriamente dita, mas abandona a ideia de que elas representam três faculdades diferentes da alma. Antes, todas as três já se encontram latentes na primeira, Nefesch, e os graus mais altos correspondem aos poderes novos e mais profundos que a alma do devoto adquire através do estudo da Torá e das ações meritórias.
Em particular, a Neschamá, a “alma sagrada”, só pode ser realizada pelo devoto perfeito, que, para o autor do Zohar, se identifica com o cabalista, e é apenas penetrando nos mistérios da Torá, isto é, através da compreensão mística de seus poderes cognitivos, que ele a adquire2. Neschamá é o mais profundo poder intuitivo que leva aos segredos de Deus e do universo. Portanto é natural que a Neschamá seia também concebida como uma centelha da Biná, o próprio intelecto divino3. Adquirindo-a, o cabalista compreende assim algo do divino em sua própria natureza. As várias doutrinas pormenorizadas que dizem respeito às funções, origens e destinos das três almas do homem são obscuras e às vezes contraditórias, bem como intricadas, e não é minha intenção analisá-las aqui, mas talvez seja digno de nota que, em geral, nosso autor mantém o ponto de vista de que apenas Nefesch, a alma natural dada a todo homem, é capaz de pecado: Neschamá, a centelha divina mais profunda da alma, está além do pecado. Em seus escritos hebraicos, Moisés de Leão realmente propõe a questão: como é possível para a alma sofrer no Inferno, uma vez que a Neschamá é substancialmente o mesmo que Deus, e Deus portanto inflige aparentemente punição a Si Próprio?4 Sua solução do problema — que incidentalmente projeta uma torrente de luz sobre o panteísmo que está por trás de seu sistema — é que no ato do pecado, a Neschamá, o elemento divino, abandona o homem, e seu lugar é tomado por um espírito impuro do “lado esquerdo”, que instala sua morada na alma e que só ela sofre os tormentos da retribuição. A própria Neschamá não é afetada e, se desce ao Inferno, é só para guiar algumas das almas sofredoras de volta à luz. No Zohar, também, a punição da alma após a morte é similarmente restringida à Nefesch, e em algumas passagens estendida ao Ruach, mas nunca à Neschamá5.
A estória do destino da alma após a morte, de recompensa e punição, da bem-aventurança do devoto e dos tormentos do pecador, em resumo, a escatologia da alma, é o último dos problemas maiores com os quais o autor se preocupa6. A ligação disto com as ideias fundamentais de sua teosofia é bastante frouxa, mas sua vívida imaginação produz constantemente novas variações sobre o tema cuja exemplificação pormenorizada ocupa parte considerável do Zohar. Tomada de modo geral, a doutrina exposta pelo autor é razoavelmente coerente. Como os cabalistas, ele ensina a preexistência de todas as almas desde o início da criação. De fato, vai tão longe a ponto de asseverar que as almas preexistentes já eram pré-formadas em sua plena individualidade enquanto ainda estavam ocultas no ventre da eternidade. “Desde o dia em que ocorreu a Deus criar o mundo, e mesmo antes que fosse realmente criado, todas as almas dos íntegros estavam ocultas na ideia divina, cada uma em sua forma peculiar. Quando Ele configurou o mundo, elas foram atualizadas e se apresentaram a Ele em suas várias formas nas alturas supremas (ainda no mundo sefirótico), e só então Ele as colocou no tesouro do Paraíso superior” (Zohar III, 302b). Lá as almas vivem em puras vestimentas celestes e desfrutam a bem-aventurança da visão beatífica. Seu progresso da esfera sefirótica para o reino paradisíaco, que já está fora de Deus, é interpretado como uma consequência da mística “união do Rei e da Shekinah” (Ibid., III, 68a/b). Mas inclusive neste estado preexistente, há diferenças e gradações na posição das almas.
Em mais de uma ocasião, lemos sobre a “audiência” dada à alma por Deus (Ibid., I, 233b; II, 161b) antes que ela desça para um corpo mundano e o voto assumido pela alma no sentido de completar sua missão na terra com atos piedosos e cognição mística de Deus. A partir de sua boas ações, Mitzvot, não dos dias em que realizou o bem, como’”diz a descrição poética, a alma durante sua estada terrena tece a vestimenta mística que está destinada a usar após a morte no Paraíso inferior7. Esta noção de vestimentas celestiais das almas tem uma atração “especial para o autor. Só as almas dos pecadores se apresentam “nuas”, ou pelo menos o traje da eternidade que elas tecem no tempo e fora do tempo tem “buracos”. Após a morte, as várias partes da alma, havendo realizado sua missão, voltam à sua localização original, mas aquelas que pecaram são levadas ao tribunal e purificadas na “corrente flamejante” da Geena, ou, no caso dos pecadores mais vergonhosos, queimadas (Zohar II, 209-212a).
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Cf. J. HUSIK, A History of Mediaeval Jewish Philosophy (1918), p. XLVII. ↩
Zohar I, 206a; II, 141b; III, 70b. É possível ainda distinguir o caráter original desta psicologia a partir do Midrasch Ha-Neelam, especialmente para o capítulo semanal Bereschit (impresso nas edições do Zohar Hadasch). ↩
Biná é chamada, com frequência, com uma imagem procedente do livro de Daniel, o “fluxo primevo que Dele sai e se alarga” e a alma Neschamá provém deste fluxo de luz. (O Zohar utiliza a ligação etimológica entre as palavras nahar, “fluxo”, com nehorá, “luz”.) II, 174a sugere até uma Neschamá superior na Sefirá da Hochmá. ↩
Moisés DE LEÃO coloca a questão em seu livro Nefesch Ha-Hahamá (1290), Basileia (1608), cap. II, e em 1293, na obra ainda inédita Mischkan Ha-Edul. A solução citada no texto é a deste último livro. ↩
Zohar I, 81b, 226a/b; III, 70b diz que a Neschamá — alma — retorna imediatamente após a morte à sua morada celeste no Paraíso superior. Só uma passagem, II, 97a, menciona um julgamento sobre a “alma sagrada”; o conceito, contudo, é usado não no sentido de que implique uma parte especial da alma mas significa a alma como um todo. Cf. também II, 210a. Moisés DE LEÃO diz, no Mischkan Ha-Edut, ms. Berlim, f. 46a: “O espírito do justo ingressa na Gehena e lá é purificado e passa e sai de lá novamente em paz”. A ideia de que as almas dos inteiramente justos descem ao Inferno para o propósito de salvar outras almas, aparece também em III, 220b. ↩
As teorias do Zohar a este respeito são ainda mais embelezadas no pseudo-epigráfico Testamento do Rabi Eliézer, que foi impresso, em parte, sob o título de Seder Gan Eden por JELLINEK em seu Beit Ha-Midrasch, vol. III, PP. 131-140. Moisés de Leão abordou todas estas ideias de uma maneira pormenorizada nos seus dois livros citados em nota anterior. ↩
Investiguei esta ideia em meu trabalho hebraico “As vestimentas paradisíacas da alma”, em Tarbiz, vol. XXIV (1955), pp. 290-306. ↩