Gershom Scholem — A Mística Judaica
Para a sequência das dez Sefirot, os cabalistas possuem vários termos mais ou menos fixos; esta terminologia é também muitas vezes empregada pelo Zohar, embora com frequência ainda maior seu autor opere com numerosos nomes simbólicos correlacionados com cada Sefira e seus vários aspectos. Estes nomes fixos e comuns das Sefirot são:
1. Keter Elion, a “suprema coroa” de Deus;
2. Hochmá, a “sabedoria” ou ideia primordial de Deus;
3. Biná, a “inteligência” de Deus;
4. Hessed, o “amor” ou misericórdia de Deus;
5. Guevurá ou Scholem Din, o “poder” de Deus, que se manifesta principalmente como o poder de julgamento e punição severos;
6. Rahamim, a “compaixão” de Deus, à qual incumbe a tarefa de mediar entre as duas Sefirot precedentes; o nome Tiferet, “beleza”, só é usado raramente;
7. Netzá, a “constância duradoura” de Deus;
8. Hod, a “majestade” de Deus;
9. Iessod, a “base” ou “fundação” de todas as forças ativas em Deus;
10. Malkut, o “reino” de Deus, comumente descrito no Zohar como a Knesset Israel, o arquétipo místico da comunidade de Israel, ou como a Shekinah.
Eis as dez esferas da manifestação divina em que Deus emerge de Sua morada oculta. Juntas, formam o “universo unificado” da vida de Deus, o “mundo da união”, alma de-iihuda, cujo conjunto e pormenores o Zohar tenta interpretar em uma variedade interminável de especulação. Desta multidão de símbolos, só posso citar e tentar interpretar uns poucos.
A maneira como as Sefirot são descritas no Zohar que, é preciso salientar, evita este termo clássico e em vez dele usa outros, lança alguma luz sobre até que ponto a ideia das qualidades místicas de Deus foi se distanciando da concepção dos atributos divinos. Estes são chamados de “coroas místicas do Santo Rei” apesar do fato de que “Ele é eles, e eles são Ele”. Eles são os dez nomes mais comuns a Deus e em sua totalidade também formam seu único grande Nome. São “as faces do Rei”, em outras palavras, seus aspectos variantes, e são também chamados a Face interior, intrínseca ou mística de Deus. São os dez estágios do mundo interior, pelo qual Deus desce dos recessos mais íntimos para Sua revelação na Shekinah. São as roupas da Divindade, mas também os feixes de luz que ela emite1.
O mundo das Sefirot é descrito, por exemplo, como um organismo místico, um símbolo que tem a vantagem adicional de fornecer aos cabalistas uma justificativa pronta para o modo antropomórfico da expressão bíblica. As duas imagens mais importantes usadas em relação a isto são a da árvore (ver o desenho) e a do homem.
“Todos os poderes divinos formam uma sequência de camadas e são como uma árvore” — já lemos no livro Bahir, pelo qual, como vimos, os cabalistas do século XIII tornaram-se herdeiros do simbolismo gnóstico. As dez Sefirot constituem a mística Árvore de Deus, ou árvore do poder divino, representando cada uma um ramo cuja raiz comum é desconhecida e desconhecível. Mas o Ein-Sof é não só a oculta Raiz de todas as Raízes, como também a seiva da árvore; todo ramo que representa um atributo, existe não por si mesmo, mas em virtude do Ein-Sof, o Deus oculto. E esta árvore de Deus é também, por assim dizer, o esqueleto do universo; ela cresce por toda a criação e espalha seus ramos por todas as suas ramificações. Todas as coisas mundanas e criadas só existem porque algo do poder das Sefirot vive e atua nelas.
O símile do homem é usado com tanta frequência quanto o da Árvore. A palavra bíblica de que o homem foi criado à imagem de Deus significa duas coisas para o cabalista: primeiro, que o poder das Sefirot, o paradigma da vida divina, existe e é, ativo também no homem. Em segundo lugar, que o mundo das Sefirot, isto é, o mundo de Deus, o Criador, é capaz de ser visualizado sob a imagem do homem, o criado. Disto segue-se que os membros do corpo humano, repetindo o exemplo que já dei, não são nada exceto imagens de um certo modo espiritual de existência, que se manifesta na figura simbólica de Adam Kadmon, o homem primordial2. Pois, repetindo, o Próprio Ser Divino não pode ser expresso. Só é possível expressar Seus símbolos. A relação entre o Ein-Sof e suas qualidades místicas, as Sefirot, é comparável àquela entre a alma e o corpo, mas com a diferença de que o corpo e a alma humanos diferem em natureza, sendo um material e a outra espiritual, ao passo que, no todo orgânico de Deus, todas as esferas são substancialmente o mesmo3. Não obstante a questão da essência e substância das Sefirot, com a qual o próprio Zohar não se preocupa, tornou-se subsequentemente para o cabalismo teosófico um problema especial à cuja consideração precisamos renunciar aqui4. A concepção de Deus como um organismo tinha a vantagem de responder à questão de por que existem diferentes manifestações do poder divino, embora o Ser divino seja um Todo Absoluto. Pois não é a vida orgânica da alma uma só, embora a função das mãos difira daquela dos olhos, etc..
Incidentalmente, a concepção das Sefirot como partes ou membros do anthropos místico leva a um simbolismo anatômico que não recua diante das conclusões mais extravagantes. Assim, por exemplo, os vários aspectos da barba usada pelo “mais velho” são interpretados como representações simbólicas dos tons variados da compaixão de Deus. O Idra Raba é quase inteiramente devotado a um simbolismo muito radical desta espécie.
Junto com esse simbolismo orgânico, outros modos de expressão simbólica apresentam-se ao teósofo que se preocupa em descrever o reino da Divindade. O mundo das Sefirot é o mundo oculto da linguagem, o mundo dos nomes divinos. As Sefirot são os nomes criadores que Deus chamou para dentro cio mundo, os nomes que Ele deu a Si Próprio. A ação e o desenvolvimento daquela força misteriosa que é a semente de toda criação constituem, de acordo com a interpretação zohariana do testemunho bíblico, nada menos do que a fala. “Deus falou — esta fala é uma força, que no início do pensamento criador, estava separada do segredo do Ein-Sof’. O processo da vida em Deus pode ser interpretado como o desdobramento dos elementos da fala. Este é de fato um dos símbolos favoritos do Zohar. O mundo da emanação divina é um mundo em que a faculdade da fala é antecipada em Deus. As etapas variadas das Sefirot-Universo representam, segundo o» Zohar, a vontade abissal, o pensamento, a palavra interior e inaudível, a voz audível e a fala, isto é, a expressão articulada e diferenciada5.
A mesma concepção de diferenciação progressiva está inerente em outros simbolismos dos quais gostaria de mencionar apenas um, o do Eu, Tu e Ele. Deus na mais profundamente oculta de Suas manifestações, quando por assim dizer decidiu lançar-se à Sua obra de criação, é chamado Ele. Deus no desdobramento completo de seu Ser, Graça e Amor, em que Ele se torna passível de ser percebido pela “razão do coração” e, portanto, do ser expresso, é chamado “Tu”. Mas Deus, em Sua suprema manifestação, onde a plenitude de Seu Ser encontra sua expressão final no último e todo-abarcante de Seus atributos, é chamado “Eu” 38. Este é o estágio da verdadeira individuação na qual Deus, como pessoa, diz “Eu” a Si Próprio. Este Ego divino, este “Eu”, de acordo com os cabalistas teosóficos — e esta é uma de suas doutrinas mais profundas e importantes — é a Schehiná, a presença e a imanência de Deus no todo da criação. É o ponto onde o homem, ao atingir o mais profundo entendimento de seu próprio eu, torna-se cônscio da presença de Deus. E só a partir deste ponto, encontrando-se por assim dizer à porta do Reino Divino6, ele progride para as regiões mais profundas do Divino, para Seu “Tu” e “Ele” e para as profundezas do Nada. Para avaliar o grau de paradoxo implícito nestes pensamentos notáveis e muito influentes basta lembrar que em geral os místicos, ao falar da imanência de Deus em Sua» criação, tendem a despersonalizá-Lo: o Deus imanente torna-se com demasiada facilidade uma Divindade impessoal. Com efeito, esta tendência tem sido sempre uma das armadilhas principais do panteísmo. Tanto mais notável é o fato de que os cabalistas, e até aqueles que, dentre eles, se inclinam ao panteísmo, conseguiram evitá-lo, pois, como vimos, o Zohar identifica o mais alto desenvolvimento da personalidade de Deus com precisamente aquela, etapa de Seu desdobramento que está mais perto da experiência humana, na verdade que é imanente e está misteriosamente presente em cada um de nós.
Os termos “degraus” e “luzes” são os empregados com maior frequência com respeito às Sefirot III, 7a, se lhes refere com “aquelas vestimentas gloriosas de que o Rei se revestiu”. ↩
A própria expressão técnica Adam Kadmon não aparece nas principais partes do Zohar, mas só nos Tikunim. O Zohar fala de um Adão celeste, o superior. Mas em III, 193b, encontramos a expressão aramaica Adam Kadmaa Temirá. No aramaico, porém, Adam Kadmon é apenas a tradução literal de “o primeiro homem”. No Idra Raba III, 139b lemos: “Todas aquelas sagradas coroas do Rei chamam-se, quando se reúnem em sua figura, Adam, uma arquifigura que tudo abarca”. ↩
Essa é a interpretação dada por Cordovero em seu Pardess Rimonim. ↩
O capítulo sobre as Sefirot como seres ou instrumentos da Divindade no magnum opus de Cordovero é devotado à discussão deste problema. ↩
Zohar I 74a. O mesmo simbolismo é usado em I, 15a/b. Moisés de Leão explicou minuciosamente o sentido desse simbolismo em muitas passagens de seus livros hebraicos. ↩
A décima Sefirá é designada, por exemplo,no Zohar I, 11b, como “o portal que introduz no mistério da fé”. ↩