GERSHOM SCHOLEM — CABALA
Contribuição de Antonio Carneiro
KLIPOT
De acordo com Natã, existe um certo relacionamento entre o Messias e o desenvolvimento de todos aqueles processos intrínsecos de que falei na última conferência: Tzimtzum, Schevira e Tikun. No começo do processo cósmico, o Ein-Sof recolheu Sua luz para dentro de si, e aí surgiu aquele espaço primevo no centro do Ein-Sof do qual todos os mundos nascem. Este espaço primevo está cheio de forças amorfas, hílicas, as Klipot. O processo do mundo consiste em fazer algo a partir delas. Enquanto isto não for feito, o espaço primevo, em particular sua parte inferior, será a fortaleza da escuridão e do mal. É a “profundeza do grande abismo” no qual os poderes demoníacos têm sua morada. Em seguimento à Ruptura dos Vasos, quando algumas centelhas da luz divina, irradiando do Ein-Sof a fim de criar formas e moldes no espaço primevo caíram no abismo, caiu também a alma do Messias, que estava incrustada naquela luz divina original. Desde o começo da Criação, esta alma morou na profundeza do grande abismo, retida na prisão das Klipot, o reino da escuridão. Com esta alma santíssima, habitam no fundo do abismo as “serpentes” que a atormentam e tentam reduzi-la. A estas “serpentes” é entregue a “serpente sagrada” que é o Messias — pois não tem a palavra hebraica para serpente, Nahasch, o mesmo valor numérico que a palavra para Messias, Maschiah? Só na medida em que o processo do Tikun de todo o mundo perfaz a seleção do bem e do mal na profundeza do espaço primevo será a alma do Messias liberta da servidão. Quando o processo de perfeição, para o qual esta alma trabalha em sua “prisão” e pelo qual luta com as “serpentes” ou “dragões”, estiver completo — o que, entretanto, não acontecerá antes do fim do Tikun em geral — a alma do Messias deixará sua prisão e revelar-se-á ao mundo numa encarnação terrena. Assim pensava Natã de Gaza. É do mais profundo interesse o fato de encontrarmos nos escritos de um jovem do gueto de Jerusalém, no século XVII, um antiquíssimo mito gnóstico sobre o destino da alma do Redentor, composto de ideias cabalísticas, mas, não obstante, com intuito óbvio de constituir uma apologia do estado mental patológico de Sabatai Tzvi. Não fosse pelo fato de se achar a matéria-prima desta doutrina cabalística realmente no Zohar e nos escritos luriânicos, seriamos tentados a postular uma intrínseca, embora para nós obscura, conexão entre o primeiro mito sabatiano e o da antiga escola gnóstica, conhecida como Ofitas ou como Naassenos, que colocava o simbolismo místico da serpente no centro de sua Gnose1.
A aplicação prática dessa nova teoria é apresentada por Natã de maneira bastante franca e frequentemente enfatizada. Assim se expressa ele: “Descrevemos todas essas coisas apenas para proclamar a grandeza de nosso mestre, o Rei Messias, como ele conseguirá quebrar o poder da serpente, cujas raízes são profundas e fortes. Pois estas serpentes sempre tentaram atraí-lo e todas as vezes que ele labutou para extrair grande santidade das Klipot, elas puderam apoderar-se dele quando o estado de iluminação o abandonava. Então mostravam-lhe que, também elas, tinham o mesmò poder que a Sefirá da “Beleza” na qual ele (Sabatai Tzvi) acreditava estar representado o verdadeiro Deus, assim como Faraó — que é o grande dragão, o símbolo da Klipá — dizia: Quem é Deus? Mas quando a iluminação descia sobre ele, ele costumava dobrá-la (a serpente ou o dragão que o atormentara em sua depressão). E sobre isso já disseram nossos mestres (Baba Batra 15b): “Maior é o que está escrito de Jó do que o que está escrito de Abraão. Pois de Abraão só é dito que ele temia a Deus, mas de Jó que ele temia a Deus e evitava o mal. Pois já expliquei acima que, na Escritura, o Redentor é chamado Jó porque caiu sob o domínio das Klipot. E isto refere-se aos dias de escuridão que são os dias da sua depressão; mas quando a iluminação descia sobre ele nos dias de calma e júbilo, então ele ficava no estado que é chamado “e evitava o mal”; pois então emergia do reino das Klipot em cujo meio afundara nos dias de escuridão”2.
Consequentemente, nesta interpretação, o elemento metafísico e o psicológico estão firmemente entrelaçados ou, para ser mais exato, eles são um. A pré-história metafísica da alma do Messias é também a história daqueles estados psíquicos que, para Natã, são exatamente a prova de sua missão divina. E é fácil perceber que a idéia gnóstica de um aprisionamento do Messias no reino do mal e da impureza, que nessa doutrina ainda não tem conotações heréticas, serviu sem dificuldades para tal desenvolvimento depois da apostasia do Messias. De uma maneira que espanta por seu caráter fantástico, a subseqüente doutrina herética de Natã e dos outros sabatianistas relativa à missão do Messias, e particularmente em relação à sua apostasia como uma missão, está contida in nuce nesse surpreendente documento do primitivo sabatianismo3.
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Sobre o simbolismo da serpente, cf. por exemplo, MEAD, Fragments of a Faith Forgotten, 39 edição, Londres (1931), p. 182. ↩
Cf. em meu livro, vol. I, p. 105, assim como a explicação ulterior, p. 250. ↩
Esse é o ponto principal em que as concepções representadas nessa conferência difertm de meu ensaio sobre o sabatianismo, Mitzva Ha-Baa Ba-Avera, com o qual iniciei meus estudos sobre o tema, em Knesset II, (1937), pp. 346-392. ↩