Savian (2005:78-81) – substantia

(…) essentiae in uniuersalibus quidem esse possunt, in solis uero indiuiduis etparticluaribus substant;

(…) as essências certamente podem ser nos universais, mas é apenas nos indivíduos e nos particulares que elas têm substância.

Esse princípio, conforme lembra H. Chadwick, talvez fosse comum à tradição peripatética, e Boécio pode tê-lo extraído de um comentário (que se perdeu) de Alexandre de Afrodísia às Categorias de Aristóteles. Por outro lado, pode ser uma prova intencional do bilinguismo de Boécio, precisamente num momento em que a investigação se voltava para os aspectos linguísticos da questão.

Por esse princípio, diferencia-se o modo de ser próprio dos gêneros e espécies do modo de ser próprio dos indivíduos, indicando-se, ao mesmo tempo, o núcleo do que constitui a substancialidade, dado o escopo de distinguir “natureza” e “pessoa”. O primeiro parágrafo extrai um corolário das conclusões a que chegou o capítulo II e, portanto, define “pessoa” como substância individual de natureza racional. Boécio esclarece que essa é a definição do que os gregos chamavam de ύπόστασις, enquanto os latinos chamavam de persona, por influência das máscaras do teatro (personae). A essas máscaras os gregos também chamavam πρόσωπα. Ocorre que, em III [190], Boécio diz que a Grécia, “mais precisa nas palavras, chama ύπόστασις a subsistência individual” e, registra, então, o princípio citado acima, segundo o qual a intelecção dos universais é tomada dos particulares. Em III [35], Boécio afirma que as subsistências mesmas são nos universais, mas tomam substância nos particulares e, com isso, apenas esclarece a equivalência entre υπόστασις e subsistentia indiuidua, reservando para subsistentia um parentesco com as οὐσίαι. Assim, toda substância é uma subsistência (individual), mas a recíproca não é válida, o que faz Boécio esclarecer:

ούσίωσις = subsistentia — subsistência;

ούσιώσθαι = subsistere — subsistir (não carecer de acidentes para poder ser);

ύπόστασις = substare — estar sob (subministrar um substrato para acidentes).

Disso se conclui que os gêneros e as espécies apenas subsistem, ao passo que as coisas individuas não apenas subsistem (porque, afinal, não são os acidentes que as fazem ser), mas também estão sob (porque fornecem um suporte aos acidentes a fim de que eles possam ser). Boécio conclui, mencionando novamente os verbos ούσιώσθαι e ύφίστασθαι e introduz o verbo ἐίναι, “ser”, distinguindo-o de ούσιώσθαι, para, ao que tudo indica, situar as coisas individuais na ordem tanto do ἐίναι como do ούσιώσθαι e do ύφίστασθαι, enquanto os gêneros e as espécies restringir-se-iam apenas à do ούσιώσθαι e os acidentes simplesmente à do amplo sentido de ἐίναι.

Uma análise retrospectiva de toda essa composição de CEN III [1651-1220] leva a identificar uma série de aparentes ambiguidades, como, por exemplo, a equivalência entre πρόσωπον e ύπόστασις, mas não entre toda ύπόστασις e πρόσωπον; também entre substantia e subsistentia, mas não entre toda subsistentia e substantia. Assim, é possível designar como substância uma pessoa, pois toda pessoa é substância, mas não se pode simplesmente tomá-las como sinônimos, pois há substâncias que não são pessoas, o que faz Boécio precisar, em III [190], o termo ύπόστασις como designativo da subsistência individual. O mesmo se dá com a possibilidade de chamar uma subsistência de substância, pois toda substância é subsistência, ao passo que não se pode chamar toda subsistência de substância, afinal há subsistências que não são substâncias (os gêneros e as espécies, por exemplo), e, por isso, Boécio estabelece, em III [200], que as subsistências mesmas são nos universais, enquanto as substâncias referem particulares. Em III [220]-[240], Boécio desenha um quadro completo de equivalências:

οὐσία = essentia (essência);

ούσίωσις = subsistentia (subsistência);

ύπόστασις = substantia (substância);

πρόσωπον = persona (pessoa).

Boécio exemplifica com o caso do homem, dizendo que há:

οὐσία ἀντροποι = essentia hominis, porque o homem é;

ούσίωσις ἀντροποι = subsistentia hominis, porque ο homem não está em nenhum suporte;

ύπόστασις ἀντροποι = substantia hominis, porque o homem se põe sob outros que não subsistências;

πρόσωπον ἀντροποι = persona hominis, porque o homem é um indivíduo racional.

Dessa exemplificação surge a necessidade de esclarecer dois aspectos:

(1) Boécio define, em III [210], que subsistir significa não carecer de acidentes para poder ser, e, no exemplo citado (cf. III [245]), a subsistência deve-se ao fato de o que subsiste não se encontrar em nenhum suporte. Isso leva a crer que subsistir é, de fato, apresentar o constitutivo formal da quididade, naturalmente subsistente, e, assim, embora definida negativamente, subsistentia não parece, entretanto, algo de negativo, mas a perfeição positiva do ser, distinta da individuação. Por ela, a substância existe em si, é indivisível e torna-se capaz de ser sujeito substancial. Em outras palavras, a subsistência parece ser aquilo pelo qual o substrato é, aquilo pelo qual o substrato existe por si: é a existência como substância e não como modo ou acidente;

(2) no caso de se aplicarem essas noções a Deus, é preciso dizer que ele é οὐσία, é ούσίωσις e a ele se atribui ο ύφίστασθαι, ou seja, o “pôr-se sob”, sendo ele três υποστάσεις, o que justifica afirmar a unidade entre a οὐσία e a ούσίωσις divinas, ao lado da trindade de υποστάσεις e πρόσωπα. No entanto, urge esclarecer que o sentido em que se diz ser Deus substância é o sentido não de supósito, ou seja, de substrato de acidentes, mas no sentido (analógico) de o que está na raiz da sustentação no ser; aquilo que, como princípio, pode ser dito sob tudo, enquanto dá a tudo sua essência e subsistência.

Essas duas observações são exemplares para perceber que todo o capítulo III remete a uma problemática de fundo: trata-se da dificuldade em usar o termo substantia, dada não só a sua continuidade com o emprego possivelmente ambíguo de οὐσία e οὐσία πρώτη, feito por Aristóteles em diversos e diferentes contextos, mas também o uso já feito por Boécio para traduzir οὐσία, nos comentários a Porfírio, dificultando, agora, nos Escritos, traduzir para o latim expressões gregas opostas como são οὐσία e ύπόστασις, sobre as quais se fundava a expressão do dogma cristológico e trinitário.

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