Mario Satz — Zohar
Excertos de ensaio no livro “O Tesouro do Interior”
Dois livros ocupam uma posição central na doutrina e pensamento cabalísticos. Trata-se do Sefer ha-Bahir ou Livro da Claridade, de origem provençal e compilado em meados do século XII, e do Sefer ha-Zohar ou Livro do Esplendor, de origem castelhana e de autoria discutível. O Zohar é uma obra monumental, que começou a circular nos meios judaicos por volta das últimas décadas do século XIII. A palavra zohar, “esplendor” ou “resplendor” — que, como se vê, explicita e insiste no tema da luz — deriva do terceiro versículo do capítulo segundo do livro de Daniel. Apenas mais uma vez reaparece na Bíblia, em Ezequiel 8:2. Partiremos das interconexões cabalísticas entre os termos bahir, “claridade” — onde estão implícitos os termos bi, “em mim”, e har, “montanha”, aludindo ao primeiro movimento epifânico do povo judeu no monte Sinai — e zohar, “esplendor” — onde também encontra- se implícito o termo har, “montanha” — para empreendermos uma análise das circunstâncias históricas e simbólicas que permeiam o Livro do Esplendor.
Enquanto o Bahir foi escrito em hebraico mishnaico, salpicado com eventuais frases em aramaico, o Zohar foi escrito no aramaico característico do período talmúdico (séculos V a IX). O Zohar surgiu no século XIII, em mãos do rabino Moisés de León, que atribuía a um mestre tanna dos primeiros séculos de nossa era, Shimon ben Yochai, a autoria do impressionante livro, onde o próprio autor seria o personagem principal, acompanhado de sete discípulos. As lendas a seu respeito, e as principais doutrinas por ele enunciadas, formam o núcleo do Zohar, onde acontecimentos da vida cotidiana são frequentemente tomados como pontos de partida para um discurso ou colóquio. Muitas vezes os eruditos apareciam na academia ou se reuniam em torno do mestre para conhecer suas intuições, seus arrebatamentos, responder perguntas e escutar respostas. Em algumas ocasiões, juntavam-se a eles eruditos estrangeiros em busca de sabedoria, carroceiros, e até uma criança. É importante destacar que o profeta Elias, patrono da Ordem Carmelita, é mencionado no Zohar como mestre dos “segredos celestiais”. Os discípulos chamavam frequentemente o mestre Shimon ben Yochai, em aramaico, de Bosinah Kadishah, “lâmpada santa”. Quando se refere aos místicos, aos cabalistas propriamente ditos, o livro os identifica como “aqueles que conhecem as medidas” (iodhei ha-midot), ou “filhos da fé” (bnei emunah), ou “ceifadores do campo” (ovdei ha-sadeh) etc. Entretanto, o mais importante cognome é o de “sábios do coração” (chakhameilev), por estar particularmente associado às trinta e duas sen-das da Sabedoria oculta, já anteriormente mencionadas no Yetsirah e no Bahir.
O Zohar não é uma obra orgânica, sistemática. Trata-se, antes, de um mosaico de diálogos, interpretações, anedotas, referências simbólicas, silêncios e até lágrimas. Segundo Gershom Scholem, sua parte principal, chamada Sefer ha-Zohar, segue o plano do Pentateuco e imita a forma de um midrash antigo. O termo midrash deriva da raiz hebraica drash, cujo sentido é “escrutar”, “analisar” e designa algo muito tradicional e, de certa forma, inacabado no campo dos estudos religiosos judaicos, pois até hoje, qualquer talmid ou “estudante” pode executar um midrash de qualquer segmento das Escrituras. Por esse motivo, convém hoje advertir que, apesar da evidente presença do rabino Moisés de León na maior parte do Zohar, este é, assim como a Bíblia e o Talmude, um jardim-reservatório poético, místico e cosmológico que o povo hebreu foi cultivando ao longo de sua história. Assim, o rabino de León torna-se pequenino diante do conteúdo que transcreve, ou, inclusive, o próprio ben Yochai não é nada diante dos segredos maravilhosos que passava a seus discípulos.
O Zohar pode ser dividido em três partes principais: na primeira parte o Midrash ha-Neelam; na segunda, o ldrah Rabah, Idrah Sutrah, os Sitrei Torah e outros pequenos opúsculos; finalmente, o Rayah Mehemah e o que foi chamado de Tikunei Zohar ou complementos, os quais, segundo Scholem, teriam sido acrescentados ao resto do livro por volta de 1300.
É muito provável que os primeiros parágrafos da obra tenham sido escritos por um mesmo autor, pois percebe-se uma homogeneidade de estilo, ritmo, respirações e metáforas. O hebraico é usado com grande destreza, revelando um grande conhecedor da língua bíblica e um místico que foi capaz, baseando-se nos ensinamentos talmúdicos de sua época (século XIII), de desvendar os versículos mais enigmáticos das Escrituras com um gênio homilético comparável, talvez, ao do personagem central da obra, rabino Shimon ben Yochai. Daí concluirmos, pois, que o autor principal do Zohar, seu antólogo ou compilador, não pode ter sido somente um copista ou um arqueólogo de velhas parábolas, mas sim, antes, um dos pilares da idade de ouro da Kabalah espanhola.
Seu universo intelectual e conceituai não foi, nem poderia ter sido, totalmente original, pois foi precedido por Ibn Gabirol, os Yehudaha-Levi, os Ezra de Gerona e, certamente, Sefer Yetsirah e Sefer ha-Bahir, além de diversos outros mestres anônimos capazes de acrescentar sua própria e fluvial interpretação bíblica ao oceano zohárico. Quando Moisés de León teve a sua primeira obra autografa publicada por volta de 1286, o Zohar já circulava nas escolas castelhanas por mais de dez anos, o que certamente corrobora a preexistência e o anonimato desta obra monumental. Afinal, se o texto já havia alcançado tal êxito, que interesse poderia ter o rabino em competir com ele, assinando opúsculos que a ele tanto se assemelhavam? Não, o rabino Moisés de León era por demais cabalista para tanto. Ele tinha um olho voltado para o vasto passado, outro para o futuro de Israel — que é sempre messiânico — e uma terceira visão voltada para sua experiência interior, para aquilo que se sente quando se descobre algo que estava oculto. Já muito tempo antes, no século II (época justamente em que viveu Shimon ben Yochai), os PirkeiAvot ou Sentenças dos Pais atribuíam ao rabino Yochanan ben Zakai a seguinte frase: “Se alcançaste um alto grau de conhecimento da Lei, não atribua tal mérito a ti mesmo, pois é para isto que foste criado.”
Convém recordar que as Escrituras são o horto, o grande alfobre em que se encontram, em forma potencial, todas as futuras investigações que as justificam. Se não assim, de que outra maneira poderíamos entender a obra de São João da Cruz, que bebeu de suas águas, calibrou seus versículos e se permitiu tocar por sua música mais profunda, para fazê-la soar mais tarde, no diapa-são de seu próprio verbo? Scholem observa que, por volta de 1280, tudo indica que Moisés de León já estivesse de posse do original do livro, passando a seus amigos e condiscípulos alguns fragmentos do mesmo. Ao menos tem-se o testemunho de Isaac ibn Sahula de Guadalajara, que disse ter lido o Midrash ha-Neelam em 1281. Descartando outras figuras da Kabalah da época, tais como Abra-ham Abulafia de Zaragoza, Moisés de Burgos, Jacob de Segóvia e o conhecido José Gikatilla, a pessoa de Moisés de León parece de fato a mais próxima do mundo zohárico. De qualquer forma, basta-nos saber que estamos diante de um dos maiores monumentos místicos de todos os tempos, comparável aos Upanixades, ao Masnavi de Rumi, e, é claro, à obra exegética de São João da Cruz (a primeira edição impressa do Zohar teve lugar no ano de 1559 em Mântua, Itália, supervisionada por alguns cabalistas de origem ibérica lá refugiados).