Satz Vinho

CABALA — MARIO SATZ

Violou Jesus propositalmente a proibição nazarena, ou antes esclareceu a chave desse tabu? Por que explica, em Mateus 26, 29: “Digo-vos: doravante não beberei mais deste fruto da vinha até o dia em que o beberei de novo convosco no reino de meu Pai”? Estava, por acaso, consciente — e se o supomos cabalista não podia deixar de estar — de que na palavra “vinho”, iain, se inclui o duplo yod do Criador? É tradicional ler, nas escrituras rabínicas, o Nome de Deus em forma de duplo iota, duplicação de certo modo impronunciável que, por sua vez, alude às pupilas do Senhor! Porém podemos ampliar ainda mais esse contato seguindo uma pista fornecida pelo Bahir ou Livro da Claridade ao citar o Salmo 72,17: “Se perpetuará seu nome enquanto dure o sol”, pois se “perpetuará” é tradução aproximada de inon, e essa palavra contém as três letras de iain, “vinho”. Se Jesus conhecia este salmo também sabia que para a tradição oral ou Cabala registrada pelo Bahir ao mencionar o significado de inon, “ali os dois num estão presentes: o curvo e o alongado, já que tal profecia deve cumprir-se pelo masculino e pelo feminino”. O Mestre, ao oferecer a taça, o cálice de seu coração, sabia que o sangue é duplo: fogo e água, como o céu, fogo e água, e que o segundo Adão seria simbolicamente andrógino. No Tratado Sanhedrim 988 do Talmude é dito que inon é um dos nomes do Messias. E possível que Jesus conhecesse essa tradição? Imaginamos que sim, por via da antiga tradição oral farisaica, de que — tal como o reflete a Ordem Terceira da Mischná)) que fala dos ((nazarenos — “aplica-se maior rigor à impureza e ao corte do cabelo que ao fruto da vida”. De fato, “se um nazareno bebe vinho durante todo o dia, não é culpado mais do que uma vez”.

A relação do Sol com o vinho, de modo semelhante que com o sangue, é muito frequente em todo o Mediterrâneo oriental. O sangue simboliza todos os valores solidários do fogo, da vida. Segundo diversos mitos do Oriente Médio, sua substância dá nascimento às plantas e também aos metais. Veremos imediatamente como isto é certo — pelo menos em parte — para o caso do ferro. É pensando no vinho, bebida dos deuses, que Jesus, fiel à sentença expressa pelo profeta Isaías de que era a vinha do Senhor, se atreve a proclamar-se a “vida verdadeira” e diz a seus discípulos que não podem ser rebentos da planta sagrada do Senhor senão n’Ele permanecendo.

A seiva que sobe pela videira é a luz do Espírito; daí que, realmente, o vinho “incendeia”, “ilumina o rosto”. No masdeísmo, beber vinho é incorporar claridade, sabedoria e pureza. Para esta mesma tradição, nos diz Mircea Eliade, a videira arquetípica tem água em seu interior (lembremos que para os hebreus shamain, o “céu”, está composto de “água” e “fogo”); suas folhas são formadas pelos espíritos da luz e seus nós são grãos de luz (estrelas). Em seu livro sobre Las Estructuras Antropológicas de lo Imaginario (Paris, 1979), Gilbert Durand esclarece: “O vinho floresce como a vinha, é um ser vivo pelo qual é responsável e guardião o vinheiro. Não obstante, o que aqui nos interessa sobretudo é que a poção sagrada é secreta, oculta, ao mesmo tempo que água da juventude. O vinho se vincula a esta constelação na tradição semítica de Gilgamesh ou de Noé. A Deusa-mãe era chamada “mãe-tronco da videira”… O vinho é o símbolo da vida oculta, da juventude triunfante e secreta. Por isso, e por sua cor vermelha, é uma reabilitação tecnológica do sangue. O sangue recriado pelo lagar é o signo de uma imensa vitória sobre a fuga anêmica do tempo”.

A palavra “anêmica” é reveladora: rico em ferro, o vinho fortifica as hemácias de nosso sangue, que já possui esse elemento. Sabe-se que na simbologia da Alquimia, o “ferro contém em si o segredo dos segredos”, porém costuma-se ignorar que, para a Cabala, a palavra “ferro”, barzel, pode também ser lida como a conjunção de raz — que, já vimos, indica “secreto” e tem o mesmo valor numérico de or, “luz” — e leb, com o “coração”. Do que se depreende que o sangue deve sua consistência, seu poder hemoglobínico, ao oxigênio transportado aos líquidos tissulares graças à ação da ferroprotoporfirina. A passagem da hemoglobina à oxihemoglobina, realizada através de nossa respiração, é realizada mediante a união de quatro moléculas de oxigênio para cada molécula de hemoglobina. E tal é o fator que ilumina, circulando por todo o corpo, a cabeça! Com efeito, o sangue arterial é mais claro que o venoso. Para a Cabala, o ar — e portanto o oxigênio que este transporta — já possui luz.


Aqueles para quem seu próprio sangue é vinho vivem entusiasmados pelo que o espiritual fermenta, embriagando-os, em sua alma. A fim de entender mais claramente este mistério devemos recorrer ao Sufismo, que vê no vinho o mais alto segredo da busca do sagrado e no entanto recomenda a seus adeptos a abstenção, regra em geral observada em todo o Islã em relação a bebidas alcoólicas. “Vê: quando em teu sangue fluir vinho, tudo é Ele, meu Amigo, tudo é Ele!”, diz uma canção urdu salmodiada pelos continuadores do santo Chishti do século XIX, Sayed Mir Abdullah, cujo santuário está em Delhi.

Para Ibn Arabi de Murcia, o vinho simboliza o conhecimento dos estados espirituais, a ciência infusa reservada aos poucos. Precisamente devido à impossibilidade de beber vinho real ditada pelas várias proibições religiosas que existiam em torno dessa bebida, os nazarenos e os sufis o dotaram de um poder semelhante ao do sangue. Bayazid de Bishtâm, o grande místico persa do século IX, anotou: “Eu sou o bebedor, o vinho e o ato de escançar. No mundo da unificação tudo é um”. Também os iniciados gregos, ao beber vinho — agora real — sentiam que Dioniso estava vivo neles, que o sangue do deus se transformava em seu sangue, por assimilação misteriosa. Quando o místico Ibn al Farid escreveu no século XIII (época que coincide com a busca cristã do Graal) em seu poema Al-Khamriya ou Elogio do Vinho, a conhecida frase: “Bebemos à memória do Bem-amado um vinho que nos embriagou antes da criação da vida”, estava reatualizando a chave do sacerdócio de Melquisedec, Rei de Paz, que segundo o Gênesis 14,17 repartiu “pão e vinho” com Abraão e que, de acordo com Hebreus 7,3, é esse soberano de justiça (tzedek) que é “sem pai, sem mãe, sem genealogia; que não tem princípio de dias, nem fim de vida, senão que é semelhante ao Filho de Deus, e permanece sacerdote para sempre”.

Nada menos que sabedoria, a dissipação do tempo é o que se oferece a quem participa na vida anterior à videira e a quem submerge sua genealogia, quer dizer, sua cronologia, no espírito vivo que navega por nosso sangue! El Nablusi, outro sufi, comenta que o vinho significa a bebida do Amor Divino, e que esse amor é causa de embriaguez que produz o esquecimento completo de tudo o que existe no mundo. Porém trata-se de um esquecimento realizado pelo ego, não pelo Ser. “Há que ceder um para obter Um”, reza um provérbio zen. A “douta ignorância” de Nicolau de Cusa se chega por uma espécie de dupla negação: a de não conferir ao intelecto lógico mais do que lhe pertence, e logo, não considerar o tempo como meio idôneo para obter o que se vê, está fora de toda cogitação. Rumi, o grande poeta persa, disse: “Antes de que nesse mundo houvesse um Paraíso, uma vinha, uvas, nossa alma se embriagou de um vinho imortal”. Ele antes alude ao não-manifesto, ao invisível, ao interior. Para Omar Khayaam, “o néctar da uva não tem preço”. De tudo isso se depreende que o verdadeiro valor do vinho está em outra parte, no segredo que encerra mais do que no sabor que oferece.