Satz Teresa Moradas

Teresa de Avila — Moradas
Excertos de ensaio de Mario Satz, em “O Tesouro Interior”

Verificamos, ao analisarmos a sétima morada de Santa Teresa, que a transparência desta morada está ligada, entre outras razões, à reversibilidade espiritual, ou possibilidade de encontro com o Divino, caracterizada pela reintegração ou conexão que supera a excentricidade do que está disperso. Por outro lado, o número sete é também a soma de quatro — número feminino e terrestre — com três — número masculino e celeste — de sua soma ou núpcias concluímos que no sétimo se chega a uma aliança, a uma restauração de ferimentos.

Josefo conta em suas Antiguidades (5,5) que, no santuário do templo de Jerusalém, “as sete luminárias significavam os sete planetas, pois outras tantas (ramos ou braços) saíam do candelabro”. Esta menorah foi convertida, à época de Santa Teresa, em um crucifixo colocado num altar de pedra e acompanhado de três círios a cada lado.

Santa Teresa descreveu sua sétima morada como uma implosão de brilho e luz no coração de seu castelo de diamante, a partir da qual morre a mariposa do ego temporal e renasce o Cristo interior: “A alma é como um castelo todo de diamante ou de cristal muito claro, onde há muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas. E no centro de todas elas encontra-se o Senhor do castelo, que é Deus.” Por outro lado, o norte é, tanto para os orientais como para os ocidentais, a zona das sombras, da morte.

Os cabalistas relacionam o termo yahalom, “diamante”, com o termo Elohim, “Deus”. O Zohar; documento do século XIII, descreve as Sete Portas, Sete Regiões e os Sete Palácios, dos quais o último é o “mais oculto”. Segundo o rabino Shim’on Bar-Yochai, a luz emanada por este lugar “irradia em todas as direções”. Assim, é neste lugar que ocorre a união dos mundos superior e inferior, ou, pelas palavras de Santa Teresa: “é como duas velas de cera que se fundiram tanto que a luz passou a ser uma, ou que o pavio, a luz e a cera passaram a ser um…” Independente de saber ou não o significado da palavra zohar (esplendor, em linguagem bíblica), que se inicia com a letra zain, Santa Teresa sabia, por graça espiritual que lhe fora concedida para além deste mistério, do significado do sete: “ser o que já se foi”, um ponto de chegada a Deus que se torna ponto de partida do novo homem, um instante que é estância, uma existência que é essencial, e uma experiência que se torna, por sua própria irradiação e luminosidade, inesquecível.

O que a Antiguidade greco-latina, da época de Apuleio e de seu Asno de Ouro, conheceu como solificatio ou ensolaramento da alma que seguia os passos da iniciação nos mistérios de Ísis (lua-terra), será, para a santa castelhana, a compreensão de que chegara ao centro do palácio cristalino do Senhor, ou seja, ao “interior de sua alma, ao muito, muito interior, a uma coisa muito funda — que não sabe dizer como é, pois não dispõe de letras — sentindo, em si, esta divina companhia”. Tal lugar, ou topos, é também o inefável, posto que, tanto quanto as letras sânscritas do sahasrara no loto craniano, já não existe, na linguagem mística, palavra para nomear o Nomeador quando se chega ao limite do expressável.

Santa Teresa dá ainda um outro exemplo de extraordinária exatidão simbólica, referindo-se à sétima morada: “É como se houvesse duas janelas num quarto, pelas quais entrasse muita luz. A luz que entra, apesar de dividida pelas duas janelas, se faz uma só.” Trata-se justamente do que ocorre na filosofia Advaita e no zen-budismo, disciplinas em que é preciso fazer de dois um, transformando a frágil grafite de nossa existência imanente no diamante constante de nossa vida espiritual! Assim, ao entrar neste mundo, diz Santa Teresa, há duas janelas, tal como há dois progenitores, céu e terra, pai e mãe. Ao descobrir suas saídas, ou ainda melhor, ao individualizar suas causas, seus números, símbolos e imagens, a luz se faz uma, processo em que o sofrimento desempenha, assim como a ignorância, o papel de um impulso questionador cuja única resposta é Deus, o Único, o Eterno, seja qual for a figura que usemos para evocá-lo.

Sete é o número do repouso, da plenitude quieta, associado no Bahir — texto cabalístico do século XII — com a bondade (tov) do Santo. Uma potência benéfica, em suma, que, segundo a mística castelhana, não apresenta quaisquer “alvoroços interiores, tais como os que havia em todas as outras, em outras épocas”. Isto ocorre porque, no estado sabático da alma, totalmente contemplativo, o universo atinge a perfeição não mais no Devenir mas, sim, no Ser. Certos mestres espanhóis de Girona, no século XIII, identificaram na palavra hebraica shabat a expressão shab-bat, o “retorno da filha’ ‘, sendo a filha nem mais nem menos que a alma; a alma que retorna ao Espírito que a criou por intermédio do Sopro.

Santa Teresa menciona, também, o fato de que na sétima morada há um “imenso silêncio”, comparável ao que havia enquanto se construía o templo de Salomão, donde se pode inferir que seu castelo cristalino é também uma construção imaginária de cada um, em especial dos irmãos e irmãs da Ordem dos Carmelitas que se dedicam devotamente, até hoje, a escutar a grandeza de tal silêncio. De certa forma, as moradas, assim como as nafs dos sufis, os heikhalot dos hebreus, e, também, os escalões do antro pitagórico, são passagens, transmigrações de muitas vidas em uma única existência, cujo sentido só se revela após percorrido o caminho por completo, ou quando a pressão consegue converter a sombra em luz, a gravidade em levitação, ou o desconhecido em conhecido.

Verifica-se, por outro lado, segundo Otto Rank em sua obra Arte e Artista, que existe uma conexão entre os sete estágios da montanha, dos Adeptos da Alquimia, e as sete vértebras cervicais, de modo que ingressar no sétimo palácio zohárico ou na sétima morada de Santa Teresa equivale a habitar a própria cabeça numa região denominada pela anatomia septum lucidum — termo que alude sincronicamente ao número de que tratamos — que consiste numa zona coberta e protegida do resto do cérebro pelo corpo caloso. Talvez seja nesta zona, por situar-se num topos real da experiência sensível de Santa Teresa, que “as três pessoas se comuniquem com a alma, e lhe falem, e lhe deem a entender aquelas palavras que, segundo o Evangelho, disse o Senhor: que viriam Ele, o Pai e o Espírito Santo para morar com a alma, que os ama e guarda seus mandamentos”.

Luce López-Baralt relata, em sua obra Vestígios do Islã na Literatura Espanhola que existe um notável precedente das Moradas de Santa Teresa chamado Maqamat al-qulub ou Moradas dos Corações, escrito por Abu-l-Hassan al-Nuri de Bagdá, que viveu no século IX (época, a propósito, em que aparece, na literatura hebraica, os heikhalot ou “palácios” da alma). O que diferencia ambas as obras é que, enquanto a santa castelhana escolhe apenas um cristal, o diamante, o sufi estabelece correspondências entre as moradas e distintos metais ou substâncias tais como o corindo, o ouro, o ferro, o bronze, o alúmen e o barro cozido, formando um degrade de caracteres que remonta à tradição bíblica do Adão feito de barro, em cujo interior há uma joia a ser descoberta; sobre a joia encontra-se o corpo físico simplesmente encaixado, como um olho nas órbitas exatas da luz a qual responde e da qual nada mais é que imagem e semelhança.

Já na primeira morada, Santa Teresa anuncia que na sétima “há correspondências muito secretas entre Deus e a alma”, como se tudo nas seis estâncias anteriores fosse razoavelmente discernível e comunicável, porém, ao final, não é assim. Situado no coração ou na cabeça, o centro a que se refere Santa Teresa guarda um segredo denominado pelos sufis sirr e pelos cabalistas raz, e de numerologia coincidente com a da luz, que é certamente aquilo que ilumina todas as facetas do diamante, estabelecendo uma continuidade onde o olho do leigo vê somente um corte ou uma aresta diferencial. A própria Teresa adverte, mais adiante, que as moradas não devem ser entendidas como “algo enfileirado”, ou seja, compartimentado, mas sim deve-se “olhar para o centro, que é o cômodo ou palácio onde está o Rei”. Para tanto, o caminho é a oração, tanto em voz alta como em forma de exercício mental.