LOGIA JESUS — SANTIFICO-ME PARA QUE SEJAM SANTIFICADOS (Jo XVII,6-19)
EVANGELHO DE JESUS: Jo XVII,6-19
6 Manifestei teu nome aos homens que me deste fora do universo.
Eles eram teus, tu os deste a mim, e eles observaram tua palavra.
7 Agora eles sabem:
tudo o que me deste vem de ti,
8 porque as palavras que me deste, eu as dei a eles e eles as receberam.
Eles sabem em verdade que eu saí de junto de ti; e eles aderem a isto: foste tu que me enviaste.
9 Eu intercedo por eles;
não intercedo pelo universo,
mas por aqueles que tu me deste: eles são teus.
10 E tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu; e eu fui gloriflcado neles.
11 E, desde agora, não estou mais no universo, e eles estão no universo,
e eu venho junto a ti.
Pai consagrado, guarda-os em teu nome que tu me deste, a fim de que sejam um como nós.
12 Quando eu estava com eles, guardei-os em teu nome que me deste. Eu os mantive, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição,
para que o Escrito seja cumprido.
13 Agora venho a ti;
e isto digo no universo,
para que eles tenham meu bem-querer
perfeito neles mesmos.
14 Eu lhes dei tua palavra e o universo os odeia, porque eles não são do universo,
como eu não sou do universo.
15 Não intercedo junto a ti para que os tires do universo,
mas apenas para que os guardes do maligno.
16 Eles não são do universo, como eu não sou do universo.
17 Consagra-os na verdade. Tua palavra é verdade.
18 Como tu me enviaste ao universo, eu também os envio ao universo.
19 E eu me consagro por eles,
a fim de que eles sejam também consagrados na verdade. [Chouraqui]
Michel Henry: ENCARNAÇÃO [MHE]
Essa estrutura cristã da salvação, que se encontra tanto em todos os Padres como nos concílios, Agostinho a conduziu a este ponto extremo em que o tornar-se-homem de Deus — que torna possível, em contrapartida, o tornar-se-Deus do homem — deve ser tomado ao pé da letra, significando essa deificação, essa identificação com essa única Vida incorruptível que permite ao homem escapar da morte. Agostinho põe, portanto, a nu a possibilidade principiai dessa identificação explicando uma das proposições mais enigmáticas de João ao relatar as palavras de Cristo em sua última oração ao Pai. Esse texto, que desvenda os arcanos da missão de Cristo na Terra, põe em jogo uma dupla relação: a de Cristo com seu Pai, e a de Cristo com aqueles que seu Pai lhe confiou em ordem à sua salvação. Relembremos alguns elementos do contexto joanino: “Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo (…). Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E, por eles, a mim mesmo me santifico para que sejam santificados na verdade”Desse texto imenso, do qual não é possível analisar aqui todos os componentes, retenhamos a proposição sobre a qual medita Agostinho: “E por eles eu me santifico a mim mesmo”.
Estão implicadas nessa proposição, por um lado, a relação com os homens dessa operação que Cristo opera — “por eles”: é para eles que ele a cumpre; por outro lado, a própria operação (“eu me santifico a mim mesmo”). A relação com os homens, Agostinho a compreende já de início como a identidade entre Cristo e os homens. Pois como, pergunta ele, Cristo poderia santificar os homens santificando-se a si mesmo senão porque os homens estão nele? “Porque eles mesmos sou eu.” E evidente, com efeito, que, se uma santificação se produz em Cristo, aqueles que estão nele se encontram eles próprios santificados ao mesmo tempo. “Santificados” em sentido radical, o de se tornarem não santos, mas Aquele único que é o Santo: Deus. Santificados, isto é, deificados, e, como tais somente, salvos. Voltaremos no § 48 a essa identificação de Cristo com os homens sobre a qual repousa a explicitação do corpo místico de Cristo proposto por Agostinho.
A segunda implicação — a implicação de fato fundadora — apresenta–se à maneira de um enigma: é a operação de Cristo, a santificação que ele próprio cumpre mas com respeito a si mesmo, uma santificação que lhe concerne, que é dirigida para ele, que tem Cristo mesmo por objeto. “Ninguém se faz justiça a si mesmo”, tinha concedido Cristo aos doutores, escribas, sacerdotes e grandes sacerdotes que lhe dirigiam — [17, 15-19; grifo nosso] num diálogo de trágica tensão que os Sinópticos relatam tão bem quanto o texto joanino — esta reprovação gravíssima, conforme, aliás, à Lei. A resposta de Cristo consistia numa dessas declarações radicais que não podiam senão agravar seu caso: não era ele mas Deus quem lhe fazia justiça — o que supunha entre Ele e Deus uma relação tão íntima que já continha blasfêmia. Transpondo para a santificação o que acaba de ser dito da justificação (santificação e justificação não são o Mesmo?), poderia-se pensar de maneira análoga: “Ninguém se santifica a si mesmo” — e é isso, todavia, o que Cristo afirma.
É essa santificação de Cristo por si mesmo que Agostinho assume o risco de explicar, e ele o faz a partir da Encarnação e como explicação da própria Encarnação. Com efeito, uma vez que é o Verbo – que é Deus, que está no começo junto de Deus — que encarna, isto é, que se faz homem tomando a carne de um homem, então ele santifica esse homem em que encarna nessa única pessoa de Cristo que é feita Verbo e homem. Ou, para considerar as coisas já não do ponto de vista do Verbo, mas do homem em que encarnou, este foi santificado desde o início de sua existência histórica na medida em que foi o Verbo que tomou carne nele, em sua própria carne de homem. Em suma, enquanto Verbo, o próprio Cristo se santifica enquanto homem. O próprio Cristo, portanto, se santificou porque é, ao mesmo tempo, Verbo e homem e porque, n’Ele, o Verbo santificou o homem. Eis a declaração explícita de Agostinho: “Ele próprio então se santificou em si mesmo, ou seja, o homem no Verbo, porque Cristo é um, Verbo e homem, santificando o homem no Verbo”.1
Na admirável análise de Agostinho, há um núcleo que permanece obscuro. Dizer que o Verbo santifica o homem Jesus encarnando nele porque esse homem é o próprio Verbo, isso põe o Verbo no fundamento da salvação, mas não explica verdadeiramente a possibilidade interna dessa relação do Verbo com o homem. Verbo e homem estão justapostos na pessoa de Cristo, de tal modo que essa justaposição, essa natureza dupla, se encontra no centro da problemática dos grandes concílios, fixando o dogma ainda que permaneça “indizível e incompreensível”, como diz, por exemplo, Cirilo de Alexandria em sua segunda carta a Nestório, durante o concilio de Éfeso.
Ora, no texto joanino, que repete evidentemente as palavras de Cristo, a coexistência do Verbo e do homem em Cristo não se apresenta em nenhum momento como uma reunião de duas realidades opacas e irredutíveis. Muito pelo contrário: um só e mesmo princípio de inteligibilidade — ou, antes, de Arqui-inteligibilidade — atravessa o Verbo e o homem para uni-los em Cristo. Essa Arqui–inteligibilidade é a autorrevelação da Vida absoluta. O fato de esta comandar a relação fenomenológica de interioridade recíproca do Pai e do Filho tem que ver com o fato de que a autogeração da Vida absoluta seja sua autorrevelação no Si do Primeiro Vivente. Que a Arquipassibilidade dessa Arquirrevelação seja, em sua efetuação fenomenológica, a Arquicarne pressuposta em toda carne, eis o que a fenomenologia da Encarnação longamente mostrou. Mas tudo isso é dito no texto de João, que apresenta uma estrutura formal do tipo “assim como… assim também…”. Sua pretensão de dar conta da similitude de estrutura entre a relação fenomenológica de interioridade recíproca da Vida absoluta e de seu Verbo, por um lado, e a relação de interioridade fenomenológica recíproca entre esse Verbo e todos os viventes em Cristo, por outro — essa pretensão dificilmente pode ser contestada. De todos esses enunciados equivalentes — que se referem a um Além radical, a esse “Outro distinto do mundo” que é a Vida absoluta na Parusia de sua autorrevelação radical que é sua “glória” (“Eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo”) –, retenhamos o último: “E eu lhes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade” [17, 22-23].
Mas é do corpo místico de Cristo que se trata. Essa unidade de todos os homens em Cristo constitui precisamente a primeira pressuposição de Agostinho — “eles mesmos sou eu” que é também a primeira condição da salvação, uma vez que somente se todos os homens estão em Cristo, um com ele, se são o próprio Cristo, este, santificando-se a si mesmo, os santifica a todos em si, salvando-os a todos ao mesmo tempo.
O corpo místico de Cristo em que todos os homens não constituem senão um, nele, é uma forma-limite da experiência do outro; como tal, ele remete a esta. Do ponto de vista fenomenológico, o corpo místico só é possível se a natureza da relação que os homens são capazes de estabelecer entre si puder atingir esse ponto-limite, em que eles já não constituem senão um; todavia, segundo as pressuposições do cristianismo, que são igualmente as de uma fenomenologia da Vida, isso só pode se dar se a individualidade de cada um for preservada, e até exaltada, e não abolida em tal experiência, se esta deve ainda ser a experiência do outro.
Santo Agostinho, Œuvres Complètes. Paris, Librairie Louis Vivés, 1869, t. X (Tractatus, CVIII, “Sur Jean”), p. 364 ss. ↩